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Afinal, o que é a teoria da tipicidade conglobante?

Afinal, o que é a teoria da tipicidade conglobante?

Por tipicidade conglobante, devemos entender que está superada a ideia de que a tipicidade (descrição de uma conduta na norma penal) é meramente formal, essencialmente descritiva. A subsunção de fato à norma penal hoje, não gera mais a síntese de que há tipicidade penal. Pelo contrário, devemos analisar a questão da tipicidade penal em duas vertentes: 1ª) antinormatividade e 2ª) tipicidade material.

A antinormatividade diz respeito à existência de condutas tipificadas na lei penal como proibidas (não desejadas) e passíveis de uma pena em contraposição com as mesmas condutas em tese proibidas, que são fomentadas por outros ramos do direito e que são igualmente previstas em lei de igual hierarquia.

Citamos como exemplo o art. 150 do Código Penal, que trata da violação de domicílio e as determinações constantes dos Códigos de Processo Civil e Penal às obrigações dos oficiais de justiça ao cumprirem um mandado de busca e apreensão ou outro qualquer, no qual podem usar da força.

Ora, imaginemos um oficial de justiça que, ao cumprir um mandado em uma casa, encontra resistência por parte do proprietário e tem que usar da força para cumprir com seu mister. Neste caso, teríamos em tese a prática do delito de violação de domicílio, devendo o proprietário dar voz de prisão em flagrante delito ao oficial por ingressar ou permanecer sem seu consentimento naquele local particular.

Se para cada mandado cumprido pelo oficial com o uso da força ele tivesse que responder por um processo crime de violação de domicílio, evidentemente, a profissão não seria atrativa e a justiça perderia sua força coercitiva e imperativa sobre a iniquidade.

O Código Penal e os códigos de Processo Civil e Penal são leis ordinárias e possuem, portanto, a mesma hierarquia. Ocorre que, neste caso citado, há ANTINORMATIVIDADE, pois o Direito Penal tenta punir o que o Processo Civil e Penal fomentam. Há um choque normativo que deve ser resolvido pela ATIPICIDADE do fato.

Quanto ao segundo elemento da tipicidade conglobante, denominado TIPICIDADE MATERIAL, o intérprete e o operador do Direito devem analisar se o fato submetido à seu crivo pode ser excluído da incidência do Direito Penal por meio da aplicação dos princípios informadores do Direito Penal Mínimo.

Analisa-se se há ofensividade; se a sociedade está adequada à conduta; se o fato possui um desvalor normativo do resultado (insignificância); se o direito penal deve se ocupar de tal assunto não bastando os outros ramos dos direito para solucionar a questão (intervenção mínima);  e se o bem jurídico ofendido está dentro do estrato de proteção que a norma penal se propõe a proteger (fragmentariedade).

Assim, somente concluiremos pela existência de tipicidade quanto o fato não for antinormativo e quando não for afastado pelos princípios informadores do direito penal mínimo.

Convém trazer à lume o que foi estudado por Ula Senra a respeito do tema:

O direito é um universo harmônico de normas que guardam, entre si, uma certa ordem e coerência. Caso contrário, haveria a guerra civil – uma guerra de todos contra todos -, e é exatamente isso que a ordem jurídica pretende e deve impedir. É com base nesse entendimento que Eugenio Raúl Zaffaroni constrói a teoria da tipicidade conglobante. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, uma vez que pretende excluir do âmbito da tipicidade certas condutas que, pela doutrina tradicional, são tratadas como excludentes da ilicitude.  No caso de condutas em que a ordem normativa ordena ou fomenta, segundo Zaffaroni, não se fala em exclusão da ilicitude, mas de ausência de tipicidade conglobante. Por uma questão lógica, o tipo não pode proibir o que o direito ordena ou fomenta.  Dessa forma, nos casos de estrito cumprimento do dever legal que, tradicionalmente, excluem a ilicitude da conduta, estar-se-ia diante de atipicidade conglobante. Caso contrário, teríamos que considerar que o oficial de justiça que sequestra uma coisa móvel comete furto justificado, que o médico que cumpre com o dever de denunciar uma doença contagiosa comete uma violação de segredo profissional justificada ou o policial que detém um sujeito por prisão em flagrante comete uma privação ilegal de liberdade justificada.  Nos casos de intervenção cirúrgica com fins terapêuticos, a conduta do médico é atípica, por serem fomentadas pelo direito. Por intervenções com fim terapêutico devem ser entendidas aquelas que perseguem a conservação ou o restabelecimento da saúde, a prevenção de um dano maior ou a atenuação da dor. Certas intervenções cirúrgicas, como no caso mutilação, o médico é obrigado a pedir a autorização do paciente. Entretanto, sua falta acarreta apenas a responsabilidade administrativa, podendo-se atribuir a responsabilidade penal se configurar algum delito contra a liberdade individual. Porém, nunca pode ser responsabilizado por lesões corporais, porque o fim terapêutico exclui essas intervenções do âmbito de proibição do tipo de lesões.  Já nas intervenções cirúrgicas sem fins terapêuticos o tratamento é diverso. Essas ocorrem nos casos de cirurgia plástica ou extração de órgãos ou tecidos para serem transplantados em outra pessoa (o fim terapêutico diz respeito ao outro, mas não ao doador). Nesse caso, a conduta do médico é típica, mas justificada diante do consentimento e da adequação às normas regulamentares. Caso não haja consentimento do paciente, configura-se a conduta típica de lesões corporais dolosas.  Em relação às lesões desportivas, Zaffaroni considera que são conglobalmente atípicas, sempre que a conduta tenha ocorrido dentro da prática regulamentar do esporte, perdendo a atipicidade conglobante e adquirindo tipicidade penal no caso de violação dos regulamentos.  Data venia, “ouso” discordar do tratamento dado às lesões desportivas por Zaffaroni. Não me parece, ao contrário do que ele afirma, que a ordem jurídica ordene ou fomente esportes como o boxe, por exemplo. Entendo que tais esportes são tolerados pela ordem jurídica e devem, portanto, ser tratados como usualmente o fazem a doutrina e jurisprudência.  Em suma, as atividades em que a ordem jurídica ordena ou fomenta são resolvidas no âmbito da atipicidade conglobante. Já as condutas permitidas ou simplesmente toleradas são causas de exclusão da ilicitude. Nos casos de atividades perigosas, por exemplo, devem ser distinguidas as atividades fomentadas e as permitidas. A circulação de veículos automotores, que é fomentada pela ordem normativa e regulamentada, não pode ser considerada da mesma forma que outras atividades, como a instalação de uma fábrica de explosivos, que o direito apenas permite.  Por fim, a tipicidade penal é a conjugação da tipicidade legal e da tipicidade conglobante.  A tipicidade legal é a subsunção (adequação) da conduta ao tipo penal previsto em lei.  A tipicidade conglobante é a antinormatividade aliada à tipicidade material.  A tipicidade material significa que não basta que a conduta do agente se amolde ao tipo legal. É preciso que lesione ou coloque em risco bens jurídicos penalmente relevantes. Aliás, é sempre importante lembrar que uma das funções precípuas do direito penal é a proteção de bens jurídicos tutelados pela norma criminal.

Rodrigo Murad do Prado

Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Mestre em Direito. Criminólogo. Defensor Público.

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