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Teorias do processo: relação jurídica, situação jurídica e procedimento em contraditório

Teorias do processo: relação jurídica, situação jurídica e procedimento em contraditório

As concepções do processo dividem-se em três, ou seja, pode-se conceber Processo como relação jurídica, como situação jurídica ou como um procedimento em contraditório. É importante que, ao filiar-se a uma ou outra corrente, haja coerência com as demais categorias e correntes de entendimento com demais elementos do ordenamento jurídico, de modo teórico, mas certamente com consequências práticas.

Relação jurídica

A ideia de processo como uma relação jurídica possui origens inteiramente alemãs, com Hegel, Bethmann-Hollweg e Bülow. A relação jurídica que constitui o processo é formada pelo conjunto de direitos e obrigações recíprocas que se formam entre o Poder Judiciário e as partes, quando proposta a Ação.

No entanto, apresentando as características de tal relação, é que demonstrar-se-á o porque não se sustenta, a partir das bases deste Ensaio, tal corrente. Caracterizada por tratar-se de uma relação jurídica pública, ela também possui característica de avanço gradual, ou seja, a medida que o processo se desenvolve ela prossegue e evolui.

Ainda, advinda do Direito Contratual, é entendida como um contrato de Direito Público, onde um lado se propõe a decidir e o outro a se submeter aos resultados e arcar com as consequências dessa decisão (sentença, acórdãos). Atos, esses, separados, independentes e resultantes uns dos outros (SILVEIRA FILHO, 2015).

No tocante a tais adjetivos, há um colapso com a ideia de processo como jogo, ou seja, como um conjunto de relações de decisões interdependentes, as quais tornam os atos que são desencadeados dependentes e interligados. Aliás, se são independentes não se resultariam uns dos outros.

Além disso, desconsidera a existência de relações anteriores, ou seja, cada processo zeraria a relação formada em processo anterior. É, no mínimo, ilusório pensar dessa forma, haja vista que uma das variáveis do jogo processual são os jogos anteriores.

Ademais, é nítida a impossibilidade de aplicação de tal noção ao Direito Processual Penal, visto que as fortes marcas do Direito Contratual impedem o encaixe com as bases que estruturam aquele. Não há formação de contrato entre os sujeitos processuais dentro do Processo Penal, mas sim, o exercício de suas respectivas funções para a consolidação (ao máximo possível) do devido processo penal, dentro de um Estado (que se diz) democrático.

Entretanto, deve-se ressaltar as contribuições desta corrente, através de seu precursor, no tocante à constituição dos pressupostos processuais (competência, capacidade jurisdicional e das partes, legitimidade, suspeição, direito material…) (SILVEIRA FILHO, 2015).

Situação jurídica

Concebida pelo jurista James Goldschmidt, com a finalidade de ir de encontro à concepção de Bullow, afirma que processo é uma situação, ou seja, “o estado de uma pessoa frente aos seus direitos, sob o ponto de vista de uma sentença judicial, que se espera com fundamento nas normas jurídicas” (GOLDSCHMIDT, 1961).

Conferida a contribuição desta corrente, por Aury Lopes Jr. como sendo a ênfase ao caráter dinâmico do processo (2016), advinda da Metáfora da Guerra:

Durante a paz, a relação de um Estado com seus territórios e súditos é estática, constitui um império intengível. Enquanto a guerra se instala, tudo se encontra na ponta da espada; os direitos mais intangíveis se convertem em expectativas, possibilidades e cargas, e todo direito pode aniquilar-se como consequência de haver desaproveitado uma ocasião ou descuidado de uma carga; como al contrário, a guerra pode proporcionar ao vencedor o desfrute de um direito que em realidade não lhe corresponde. Tudo isso pode afirmar-se correlativamente respectivo do Direito Material das partes e da situação em que elas mesmas se encontram com relação a ele, quando iniciado o processo[1] (GOLDSCHMIDT, 1961).

Com o dinamismo levantado por esta corrente, não há mais como se falar em direito, apenas de possibilidades, expectativas e cargas. Entretanto, muito embora quando se trata de Tutelas de Urgência verifica-se a veracidade de tal concepção, pois é a partir da possibilidade de concessão futura de um direito que se fundamenta tanto a própria tutela quanto a decisão correspondente, há de se fazer ressalvas ou retaguardas dentro do processo penal.

Não parece que o processo penal perpassa pela noção de possibilidades, acompanhados de uma expectativa desses possíveis direitos serem materializados a cargo de uma sentença, justamente por não ser este o tipo de situação que se encontram os sujeitos processuais penais quando ingressada a Ação, recebida a denúncia, ou muito antes disso, na fase preliminar.

O processo penal, em si, é um direito constitucional, bem como o direito a inocência acompanha todo o processo até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Caso culpado, muitas vezes imerecidamente pois na Guerra vence o mais forte, nem sempre o certo, o direito de inocência, de ser tratado e considerado inocente jamais se transforma, tão somente encontra, deságua no direito ao cumprimento a reprimenda de maneira justa, positivada com filtro Constitucional, e humana.

Dessa forma, não há como configurar uma possibilidade de inocência, como quis o Supremo Tribunal Federal em decisão retrógrada (HC 126.292/SP), em fevereiro de 2016. Permitir a existência da possibilidade de inocência é presumir culpa precocemente, é rasgar todo o Sistema Processual Penal Acusatório Constitucional. Game over.

Tratar como possibilidade direitos penais conquistados é fragilizar ainda mais o sistema de garantias individuais do acusado, alcançados minimamente a base de muita luta, suor, sangue e vidas. Contudo, há de se fazer a distinção: possibilidade de direito não se confunde com o desejo de uma sentença de teor X ou Y, do resultado que se quer obter do jogo processual! Esperar uma absolvição, uma condenação, e/ou inúmeros outros resultados (cargas processuais) advindos de uma decisão e dos jogos processuais é diferente de tratar como possibilidade direitos positivados por normas e princípios.

Procedimento em contraditório

A terceira Teoria do Processo é a que lhe encara como Procedimento em Contraditório, de Elio Fazzalari (1957) extraída dos ensinamentos de Feliciano Benvenuti (1952), no Direito Administrativo, cujo proposto foi ressignificar e distinguir função, processo e procedimento.

A função, como quis Benvenuti, é um manifestar do poder através do ato, ou seja, não é o poder, muito menos o ato em si, que constitui no resultado, na consequência de tal manifestação. Para a concretização do ato é necessária a formação de cada um de seus elementos, não somente no tocante à sucessão de operações, mas também pelo tempo, sujeitos envolvidos.

Avançando, procedimento “é história marcada por toda a série de atos necessários para a resolução do poder em um ato: significando que, no direito, o procedimento é a forma sensível da função e não puramente sua forma como modo de ser”[2] (BENVENUTI, 1952).

E atinge, a partir de um ângulo subjetivo, a sua subdivisão em: procedimento em sentido estrito e processo. Respectivamente, trata-se da sucessão de atos praticados por um único sujeito atuando em interesse próprio e sucessão de atos praticados por sujeitos distintos, cujos interesses são os do destinatário do ato e não os seus, o que estrutura a própria razão de ser do processo.

Ressalta-se a função exercida por cada sujeito dentro do processo, isto é, a maneira em que o exercício da função ou a participação dentro do processo é que o caracteriza, e não a participação em si (FAZZALARI, 1958). Por isso, o modo é determinado pelo procedimento, que, por sua vez, determina o processo como procedimento em contraditório, desconstituindo a ideia de formação do processo a partir do procedimento para composição da lide de Carnelutti.

Assim, tanto o modo de atuação processual dos sujeitos quanto o contraditório é regulado, positivado e valorizado por uma série de normas (artigos). Daí que surge a noção de procedimento como sucessão de atos (normativos para que seja judicial).

A partir da previsão normativa de uma estrutura dialética, delimitada pelo contraditório, “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contradita-los” (ALMEIDA, 1973, p. 82), é que se configura ao processo a face de procedimento em contraditório.

Encaminha-se para o final da apresentação das três concepções de Processo, com a observação formidável de Silveira Filho: “os direitos e as obrigações, no processo, advêm da estrutura normativa (procedimental) que o funda, e não de uma relação jurídica entre os sujeitos processuais” (2015, p. 132), suscitando a reflexão no sentido de que, muito embora os autores, ao longo das décadas critiquem uns aos outros e seus anteriores acerca de ideias, pensamentos, formulações, é inconteste a influência e contribuição do passado e atual estado da arte para o avanço, modificação, evolução do que virá.

O que se quer dizer é que, pegando o gancho da colocação referida, a partir da discórdia do paradigma estabelecido pela Teoria do Processo como Relação Jurídica de Goldschmidt, pensou-se aquilo que se tem e compreende hoje, e aqui, como Processo.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

BENVENUTI, Feliciano. Funzione amministrativa, proedimento, processo. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Milano gennaio/marzo 1952.

CORDERO, Franco. Procedura penale. 9. ed. Milano: Giuffrè, 2012.

FAZZALARI, Elio. Diffusione del processo e compiti della dottrina. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, a. XII, v. 2, p. 861-880, 1958

FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo. Milano: Giuffrè, 1957.

GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso. Vol I (Teoría general del proceso). Buenos Aires: EJEA, 1961.

GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso. Vol II (Problemas jurídicos y políticos del proceso penal). Buenos Aires: EJEA, 1961.

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.

SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Introdução ao Direito Processual Penal. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.


NOTAS

[1] Tradução livre: “Durante la paz, la relación de un Estado con sus territorios y súbditos es estática, constituye un imperio intangible. En cuanto la guerra estalla, todo se encuentra en la ponta de la espada; los derechos más intangibles se convierten en expectativas, posibilidades y cargas, y todo el derecho puede aniquilarse como consecuencia de haber desaprovechado una ocasión o descuidado una carga; como al contrario, la guerra puede proporcionar al vencedor el desfrute de un derecho que en realidad no le corresponde. Todo esto puede afirmarse correlativamente respecto del Derecho material de las partes y de la situación en que las mismas se encuentran con respecto a él, en cuanto se ha entabulado pleito sobre el mismo”.

[2] Tradução livre: “il procedimento è storia segnata da tutta la serie degli atti necessari per il risolversi del potere in um atto: intendendo precisare che, nel diritto, il procedimento è la forma sensible dela funzione e non puramente la sua forma come modo di essere”.


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Andressa Tomazini

Pós-Graduanda em Direito Penal e Direito Processual Penal. Pesquisadora.

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