Por que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo?
O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão do Ministério da Justiça, acaba de divulgar o novo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), com dados de junho de 2016, sobre a situação do sistema carcerário brasileiro. Lamentavelmente, as expectativas se concretizaram e o número de presos no país aumentou ainda mais desde o último levantamento. Chama atenção o dado que hoje eleva o Brasil ao posto de terceiro país do mundo com maior número de pessoas encarceradas, superando a Rússia.
Em junho do ano passado, excedemos a marca de 720 mil presos, o que representa um aumento de mais de 104 mil pessoas em relação a dezembro de 2014, marco do levantamento anterior realizado.
De 2014 para cá, a situação não se manteve a mesma; pelo contrário, apenas piorou. Neste cenário, é preciso rever urgentemente a política de encarceramento. 40% das pessoas encarceradas ainda não cumprem pena definitiva no Brasil, ou seja, são presos provisórios.
Importante pontuar que esses dados ainda não expõem os impactos da mudança de posicionamento do Supremo Tribunal Federal (ADCs 43 e 44), que passou a admitir – em flagrante contradição às disposições legais e constitucionais – a execução provisória das penas antes do trânsito em julgado das condenações criminais.
O índice de presos provisórios trazido pelo INFOPEN revela a grave distorção do processo penal brasileiro no que diz com a aplicação de medidas cautelares.
Definitivamente, não é possível afirmar que a prisão processual esteja sendo utilizada como a medida mais excepcional existente no ordenamento jurídico pátrio, dada a sua maior gravidade, nos processos em andamento. Ora, trata-se de mais um dado objetivo, que comprova a banalização do uso da prisão preventiva no Brasil.
Não há como negar que a criminalidade violenta como um todo aumentou exponencialmente nestes últimos anos, talvez em decorrência da grave crise econômica enfrentada pelo país, no seio da qual recursos deixaram de ser investidos em importantes áreas sociais, cujo abandono propicia um potencial aumento do crime.
Apenas a título exemplificativo, sabe-se que o Brasil tem a nona maior taxa de homicídios do mundo, segundo a OMS, com 30,5 casos para cada 100 mil habitantes. De acordo com o 11º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança, de 2010 a 2017 o número de latrocínios cresceu 57,8%.
Vivenciamos, sem dúvida, um verdadeiro caos em termos de segurança pública, a demonstrar que as políticas que vêm sendo adotadas insistentemente ao longo dos últimos anos em sua maioria não vêm surtindo resultados efetivos.
Uma das denúncias que não tem sido levada a sério é que a precariedade do sistema carcerário retroalimenta a criminalidade, pois, de um lado, o ambiente prisional proporciona um ciclo de recrutamento de novos indivíduos para o crime, e, de outro, não impede que o crime permaneça gerenciado de dentro dos próprios presídios.
Nem se mencione as consequências colaterais do aprisionamento sobre a família do encarcerado, que muitas vezes acaba assumindo dívidas e sendo extorquida por outros criminosos, bem como os efeitos na comunidade de onde o preso é retirado.
Nosso sistema carcerário está falido não apenas pelo déficit de vagas, que hoje ultrapassa 350 mil, sendo a taxa de ocupação total do sistema de 197,4%. A verdade é que nossas prisões registram absurdas e inaceitáveis violações sistemáticas de direitos humanos.
A maior parte dos detentos está sujeita à superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho.
É o “estado de coisas inconstitucional”, já reconhecido pelo Judiciário na ADPF 347/DF.
O número de vagas no sistema teve um aumento irrisório desde 2014, incapaz de fazer frente à massa de pessoas presas diariamente nestes últimos 3 anos. 78% dos nossos estabelecimentos prisionais estão superlotados. E esta superlotação é a maior responsável pelas condições internas dos presídios, o que acarreta reflexos na criminalidade.
À exceção dos presídios federais, onde o Estado alega ainda ter algum controle, os presídios estaduais estão declaradamente sob o domínio de facções criminosas.
O crime organizado no Brasil é um fenômeno real e de elevada estruturação e complexidade, patrocinado por vultosos recursos econômicos oriundos de lavagem de dinheiro proveniente sobretudo do narcotráfico e dos crimes que transitam no seu entorno.
Nunca foi tão necessária uma revisão de nossa política de drogas, na medida que o tráfico de entorpecentes representa quase 30% do número de presos hoje no país e, no caso das mulheres (que são apenas 5% da população carcerária total), alcança 62% das presas.
37% da população carcerária está presa por crimes contra o patrimônio (especialmente roubo e furto) e outros 11% por crimes contra a vida.
Mesmo com esses dados alarmantes, o discurso oficial é de que as medidas alternativas ao cárcere criadas nos últimos anos, como o monitoramento eletrônico e a realização de audiências de custódia, teriam evitado o ingresso de outras 140 mil pessoas. Teríamos, então, um contingente de presos ainda maior.
Diante disso, não se pode afirmar que a lei brasileira seja branda e promova a impunidade. Todas as reformas penais materiais dos últimos anos foram no sentido da criação de novos tipos penais e agravamento das penas, paralelamente às reformas processuais penais, cujos objetivos foram acelerar os processos, expropriar bens de imputados e criar novos meios de cada vez mais intrusivos de investigação.
Em contrapartida, os projetos de reformas globais do Código Penal e do Código de Processo Penal tramitam há quase uma década, sem perspectivas de aprovação, fazendo do Brasil o país mais atrasado da América Latina.
O problema da nossa legislação sempre foi a seletividade, priorizando determinados delitos, o que acaba se refletindo nos “eleitos” do sistema carcerário. Não surpreende, então, que 55% dos presos brasileiros têm entre 18 e 29 anos; 64% são negros e 75% não completaram o ensino fundamental.
É uma parcela da população extremamente vulnerável às práticas criminosas mais disseminadas pelas organizações criminosas, uma vez que não encontra no Estado nenhum estímulo à inclusão social prévia à prática criminosa, muito menos na posterior condição de egresso desse sistema. Daí as elevadas taxas de reincidência, que implicam mais prisões.
Logo, o Brasil tem hoje a terceira população carcerária mundial, porque acumula anos de descaso com o sistema prisional e com o preso em si. Onde o Estado falha, forças paralelas surgem para impor uma determinada ordem. O crime organizado tomou conta de nossos presídios e, a partir disso, iniciaram-se guerras entre facções, o que inevitavelmente aumentou a criminalidade violenta no país, gerando mais e mais prisões.
Precisou-se chamar atenção para o esquecido direito à audiência de custódia, numa desesperada busca por conter um pouco o ingresso de presos, já que outras medidas para desafogar o sistema não foram efetivas.
As audiências de custódia, que ainda não são aplicadas em seu potencial máximo e de forma correta, acabaram por revelar, em consequência, algo que já se sabia existir há muito no Brasil: uma cultura de encarceramento em massa.
A prisão sempre foi, e continuou sendo, a medida cautelar mais utilizada no processo penal brasileiro, mesmo após as reformas pontuais do CPP de 2008. É uma prática inquisitorial historicamente impregnada nos julgadores e nos atores processuais, que realmente acreditam que a prisão é a melhor solução. Não possuem qualquer preocupação com os efeitos negativos desta prática a longo prazo.
Ora, dentro desta perspectiva, quanto maior o encarceramento melhor. Os que pensam assim, querem aumentar cada vez mais o sistema penitenciário, elevando sempre o número de vagas.
Confundem isso com o gerenciamento da segurança pública. A permanecermos neste ritmo, porém, em pouco anos seremos o país que mais encarcera no mundo. Não há como conceber que este seja um dado para se orgulhar, pois esta política não ataca as causas da criminalidade.
Não é, portanto, um efetivo “combate”, mas sim uma forma de contornar o problema, sem nunca resolvê-lo. Muito disso se deve à forma como produzimos política criminal no Brasil, ao sabor de interesses sociais momentâneos, com inegável retorno eleitoral para quem defende tais ideias.
Ou o Brasil muda radicalmente de postura e de cultura ou permaneceremos um país que se notabiliza como um Estado de exceção, onde a violação sistemática de direitos fundamentais e a incapacidade de lidar com o crime organizado são uma triste realidade, incompatível com os compromissos internacionais assumidos e com nossa própria Constituição.