Grande parte dos Termos Circunstanciados deveriam ser anulados no Brasil!
Em outra ocasião (acesse aqui), formulei críticas sobre a inadmissível sistemática de penalização antecipada que se instaurou no âmbito do Juizado Especial Criminal (JECrim), através da Lei n.º 9.099/95.
Com efeito, a aplicação de penas restritivas de direitos nas benesses da transação penal e da suspensão condicional do processo se tornou a regra, mesmo sem existir prévio processo, instrução probatória, exercício do direito de defesa (o investigado e o acusado sequer foram ouvidos e já estão sendo punidos!) e, muito menos, prévio édito penal condenatório.
A Constituição Federal fora massacrada: pouco importam a presunção de inocência, o contraditório, a ampla defesa e o devido processo penal.
Na Coluna de hoje não faço diferente: venho, novamente, denunciar inconstitucionalidades atinentes ao Juizado Especial Criminal.
Como se sabe, diante da suposta prática de uma infração penal de menor potencial ofensivo – que são os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos e as contravenções penais -, por força do artigo 69 da Lei n.º 9.099/95, a autoridade policial deverá lavrar o famigerado Termo Circunstanciado (TC), para o fim de apurar minimamente a ocorrência ou não da infração penal.
E é justamente nesse ponto que reside o busílis: não se pode fazer confusão quanto à autoridade policial competente para a lavratura do Termo Circunstanciado.
Com efeito, as tarefas de formalização de expedientes investigativos e de realização de investigações preliminares são de alçada única e exclusivamente da polícia judiciária, que corresponde às polícias civil e federal.
Dito de outro modo: a honrosa Brigada Militar não goza de competência para lavrar Termos Circunstanciados, ouvir supostas testemunhas, vítimas, informantes ou o investigado, levando a termo tais inquirições, requisitar diligências e apurar eventuais infrações penais.
E quando digo isso – e o esclarecimento, aqui, é importante de ser feito, com o escopo de evitar compreensões equivocadas – não estou menosprezando a prestigiada polícia militar, senão valorizando-a: a cada espécie de polícia corresponde o cumprimento do seu dever, do seu trabalho, da sua tarefa, das suas atribuições, que decorrem de lei.
A missão da polícia militar é nobre: a de garantir o policiamento ostensivo e a proteção da sociedade.
E esse importantíssimo, sagrado e árduo (pela sua natureza) mister de proteger aos cidadãos fica, na prática, de – mais – difícil execução quando os policiais militares acabam envolvidos em burocracias e formalidades que não correspondem aos seus ofícios, senão à polícia civil, como a realização de investigações preliminares, oitiva de pessoas e lavraturas de Termos Circunstanciados.
É uma questão lógica: os agentes militares ficarão indisponíveis por um determinado período de tempo, devido a burocracias e atividades investigatórias que não lhes dizem respeito, não podendo socorrer à sociedade em algumas ocasiões (ou chegando tarde demais…), por não ser possível ficar à disposição.
E não sou eu quem diz isso.
É a Constituição Federal, que, em seu artigo 144, §§4º e 5º, define de maneira expressa e cristalina as atribuições da polícia civil e da polícia militar, dispondo que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem […] as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”, e que às polícias militares compete o policiamento ostensivo e o resguardo da ordem pública.
Veja-se que a Carta Política de 1988 é taxativa: as tarefas de investigação policial, de oitiva de testemunhas, vítimas, informantes, do investigado, lavratura de expedientes investigativos, diligências necessárias, requerimentos de mandados de busca e apreensão, interceptações telefônicas etc., são atribuições exclusivas da polícia judiciária, isto é, das polícias civis, dirigidas por Delegados de Carreira, e não da Brigada Militar, que, se assim agir, estará, de um lado, em desvio de função e, de outro lado, abusando de poder.
Sinala-se que a Constituição da República só permitiu a investigação pela polícia militar em uma hipótese: nos casos de infrações penais militares.
Afora esta possibilidade, não pode a Brigada Militar lavrar Termos Circunstanciados, fazendo às vezes de polícia judiciária, simplesmente porque a sua competência é a de policiamento ostensivo e não de apuração de infrações penais.
Alexandre Morais da Rosa e Salah Khaled Jr., por sinal, com a maestria que lhes é peculiar, já escreveram a respeito, asseverando que policiais militares não gozam de atribuições para registrar Termos Circunstanciados e que a consequência deste ato (lavratura de TC’s) somente pode ser a nulidade, “porquanto constatado vício insanável”.
Apesar disso, a questão, ao menos no Estado do Rio Grande do Sul, é gravíssima, máxime porque o Poder Judiciário tem chancelado a formalização de TC pela Brigada Militar.
Isto é, apesar do texto constitucional determinar claramente que a apuração de infrações penais compete às polícias civis, sendo de alçada da polícia militar tão somente a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, o Tribunal de Justiça e as Turmas Recursais gaúchas têm admitido a lavratura de expediente investigativo (TC) através da Brigada Militar, contra legem, com fulcro na Portaria n.º 172/2000 da Secretaria da Justiça e Segurança do Estado do Rio Grande do Sul (RIO GRANDE DO SUL, 2000), como se uma portaria administrativa gozasse de força de emenda constitucional e pudesse alterar a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A situação é manifestamente temerária: em que Estado Constitucional de Direito uma Portaria vale mais do que a Constituição Federal? Ao ponto de preponderar sobre matéria expressamente, claramente e taxativamente regulamentada na Carta Maior?
Bem… Se a supremacia das normas constitucionais fosse levada a sério no Brasil, a consequência imperiosa seria a anulação de grande parte dos Termos Circunstanciados (de todos aqueles formalizados pela polícia militar) e, inclusive, dos processos penais subsequentes, que derivaram destes expedientes investigativos, uma vez que maculados pelo mesmo vício (do TC, que é prova originária), vale dizer, são frutos da árvore envenenada.
Consigna-se, aliás, que a nulidade é absoluta (podendo ser reconhecida e reclamada a qualquer tempo, inclusive de ofício), especialmente porque decorre de violação à Constituição Federal e diz respeito a matéria de competência para a realização de atos por autoridades policiais.
Diante do exposto, não poderia concluir a presente Coluna de outro modo, senão com as seguintes indagações: será que a Constituição da República é levada a sério no Brasil? Será que vivemos, mesmo, num Estado Constitucional e Democrático de Direito?
Evidente que não…