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Teses sobre homicídio (parte 14)


Por André Peixoto de Souza


Para além da tábua do náufrago, ou dos vitimados aéreos comedores de carne humana, o estado de necessidade merece exemplos mais criativos (ou “tensos”), e análise doutrinária mais aprimorada.

Família humilde composta por mãe e filho (este, com 3 anos de idade). Para o mínimo sustento, condição verdadeira de subsistência, a mãe deve trabalhar o dia todo. Não há escola nem creche disponível; não há verba para empregar alguém no cuidado da criança; não há alternativa à saída da mãe, que deixa o filho em casa durante o dia. Uma realidade inexorável.

Sozinho, o filho brinca, dorme, come, se machuca. Não se descarta a possibilidade de lesão grave, ou mesmo de morte: uma queda fatal, um incêndio, uma asfixia por engasgo ou vômito…

Quais os limites de responsabilidade penal da mãe da criança? Não obstante a possível aplicação de perdão judicial (art. 121, § 5º do CP), há que se enfrentar o fato pretensamente punível, diante da conduta da mãe que deixou seu filho de 3 anos sozinho em casa por mais de 8 horas (como, p. ex., o pai que deixa o filho trancado num carro, a 40o C, para lhe comprar comida).

Nesse caso, há um limite tênue entre culpa e dolo. Deixar o filho pequeno (em casa, no carro) não deixa de ser um risco, e, se assumido conscientemente – mesmo que não se possa exigir outra conduta –, beira ao dolo eventual.

Mas aquela mãe precisa trabalhar! Não há ninguém por eles! É com o trabalho da mãe que advém o sustento dela mesma e de seu filho. Sem aquele trabalho – única oportunidade! – eles sequer viveriam! Dependeriam do quê ou de quem? Não há Estado provedor; não há familiares; o restrito círculo de amigos e vizinhos não faz esse tipo de caridade permanente (cada um com os seus problemas)… Sem esse trabalho, sobreviveriam em estado de mendicância! (aí, sim: mãe e filho estariam juntos nos sinaleiros da cidade, pedindo esmola). Como responsabilizar essa mãe pela morte ou lesão do filho, quando estava precisamente tentando (e, de certa forma, conseguindo) prover o sustento de sua pequena família: ela mesma e seu filho!?

A justificação do estado de necessidade parece ser aplicável nesse triste exemplo.

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André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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