Teses sobre homicídio (parte 2)
Por André Peixoto de Souza
“Entre aquilo que se passa na guerra e o que se conta depois, desde que o mundo é mundo, sempre houve certa diferença, mas, numa vida de guerreiro, que certos fatos tenham ocorrido ou não, pouco importa: existe você, sua força, a continuidade de seu modo de comportar-se, para garantir que as coisas não aconteceram exatamente assim, detalhe por detalhe, porém até poderiam ter ocorrido daquele jeito e poderiam ainda ocorrer numa ocasião semelhante.” (Italo Calvino, O cavaleiro inexistente)
Negativa de autoria. Foi ou não foi? Não há meio termo. As provas podem indicar uma ou outra posição. Testemunhas podem dizer que viram (viram mesmo? E viram o que/quem?). Álibis podem dizer o contrário (al = outro; ibis = lugar).
Mas… ubi veritas? Onde está a verdade? Foi ou não foi?
O problema da verdade é um dos mais relevantes temas não só no júri, não só na investigação criminal, não só no Direito. Essa é uma questão permanente: filosófica, ética, teológica! Proposição milenar, que explode para a literatura, para a religião, para todas as ciências. Verdade relativizada por pontos de vista, por condições originárias do sujeito (“lugar da fala”), por culturas, por ideologias. Verdade invertida por interesses pessoais, financeiros e também… ideológicos. Afinal, verdade… versão?
A verdade no homicídio se conecta a muitas alegações, teses e expedientes. Na legítima defesa: quem atirou primeiro? (se ninguém viu, e se um dos dois únicos partícipes da cena está morto?). Num depoimento testemunhal: qual o meu lugar, ou quais os meus preconceitos? Na observação midiática: que [tipo de] interesse está em jogo? Mas a tese que mais parece desafiar o problema da verdade no homicídio – e no júri – é a negativa de autoria. Insisto: foi ou não foi? Matou ou não matou?
Se as provas são cabais e apontam sem sombra de dúvidas a autoria do crime, o problema minimiza ou se anula. Mas no caso de ausência de prova ou de prova insuficiente, o direito penal recomenda a absolvição do acusado. E isso não significa que a negativa de autoria – seguida de absolvição – representa a verdade dos fatos!
Fato é que a verdade dos fatos (“o passado” = história) pertence a um mundo fenomênico IMPOSSÍVEL de ser resgatado no processo. NÃO EXISTE documento, depoimento, laudo, testemunho, álibi capaz de refazer por completo o que verdadeiramente ocorreu. Pontos de vista, interesses, ideologias e manipulações dão conta de preencher lacunas na reconstrução da história (pois o crime é história, e como tal só pode ser relatado ou recontado a partir de elementos carregados de passado).
O historiador Fustel de Coulanges sugeriu uma interessante questão: se a história da França fosse dividida em cem partes, e fosse dada cada parte a um historiador, teríamos ao final, na junção das partes, a história da França? Ora: não teríamos nem a história da França, nem a história dos fragmentos da história da França! Faltam as conexões, muitas vezes lacunosas ou mentirosas ou completamente desaparecidas (porque nunca registradas ou verdadeiramente secretas). E essas conexões – as lacunas, as mentiras, os segredos – também são verdades históricas!
A historiografia contemporânea (com especial destaque para os Annales) deu muita conta de perceber o fetichismo dos fatos. A partir disso, propôs a problematização e a interdisciplinaridade no trato aos fatos. O preenchimento das lacunas estaria, inevitavelmente, carregado de imaginação; não uma imaginação comprometedora da verdade histórica, mas uma imaginação complementar ao silêncio histórico, por aproximação, às vezes por absoluta adivinhação (adivinhar é descobrir, decifrar, acertar).
Há uma bela passagem de Marc Bloch, na sua explicação sobre (apologia da) história, que diz que o passado não deixa lugar para o possível (só o futuro é aleatório), com uma singela porém brilhante metáfora: antes de lançarmos o dado, a probabilidade (resultado = futuro) é de um para seis. Lançado e parado o dado, a probabilidade desaparece: fixa-se um, de seis. Rememorando, lá no futuro, pode ser que hesitemos ou duvidemos sobre esse resultado (se deu um, ou dois, ou cinco); portanto, a dúvida, a incerteza está no observador, na memória das partes ou testemunhas, jamais no fato! O fato é absoluto! Aconteceu ou não aconteceu! FOI OU NÃO FOI!
(Percebemos belíssima controvérsia na pena genial de Italo Calvino. Uma de suas cidades invisíveis, Olívia, é descrita com precisão e riqueza de detalhes: palácios de filigranas com almofadas franjadas nos parapeitos dos bífores; uma girândola d’água num pátio protegido por uma grade rega o gramado em que um pavão branco abre a cauda em leque. E uma descrição encaminha outra descrição: as relações, as produções, os discursos. De modo que só o discurso é que basta, pois a descrição de Olívia é o próprio discurso recheado de metáforas, movimentos e sarcasmos. A mentira não está no discurso, mas nas coisas).
Mais uma vez… ubi veritas? A autoria do homicídio é absoluta: foi ou não foi! O problema, então, reside na história desse homicídio: na negativa da autoria, nos depoimentos testemunhais (e nas falsas memórias), nas câmeras de vigilância (e nas suas edições interessadas), na condução do inquérito policial, nas torturas, nas propinas, nas fraudes, nas mentiras, ou – como não? – nas VERDADES!
Portanto, o que é a sentença criminal – ou o “veredito” do júri: a contagem das cédulas SIM e NÃO – para uma tese de negativa de autoria? Mais provavelmente é o dado de Marc Bloch, jogado sobre o tabuleiro pela mão do Juiz/jurados: o castigo (a pena) é uma opinião! Dificilmente (?) será “a verdade”.
A sorte está lançada!!