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Testemunha com direito ao silêncio?

Testemunha com direito ao silêncio?

A uma primeira vista, haveria uma tendência a uma resposta negativa à indagação que se faz no título. É que o artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição Federal, em uma leitura mais estreita e literal, estabelece como direito apenas do cidadão que estiver preso o de permanecer calado:

O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

Sabidamente, as normas constitucionais que tratam de direitos e garantias fundamentais devem ser interpretadas de modo que a elas se alcance máxima efetividade.

Nessa linha, a jurisprudência e a doutrina dominantes já consolidaram entendimento de que não apenas as pessoas que se encontram presas, mas todo aquele cidadão que esteja submetido a algum tipo de procedimento apuratório estatal de natureza criminal, é titular do direito de não apenas ficar em silêncio diante de qualquer indagação a ele dirigida, como não pode ser compelido a produzir prova contra si próprio.

Outrossim, o artigo 342, caput, do Código Penal, define como crime a conduta de “calar a verdade”, como testemunha, em processo judicial ou administrativo, inquérito policial ou em juízo arbitral, punido com pena de 02 a 04 anos de reclusão, e multa.

Logo, uma interpretação mais açodada levaria à conclusão de que, depondo na condição de testemunha, o cidadão não possui o direito de se recusar a responder a alguma pergunta a ele endereçada.

Ora, o Direito é (deveria ser, pelo menos) um sistema e é assim que deve ser visualizado, de maneira que suas normas sejam compreendidas e interpretadas como integrantes de um contexto orgânico.

O que se compreende na fórmula do artigo 5.º, inciso LXIII, da Carta Magna, é que nenhum cidadão que figure no polo passivo de atividade estatal persecutória, da qual possa resultar em atos de incriminação penal ou outro gravame jurídico, pode ser obrigado a produzir prova contra si próprio, seja respondendo perguntas, seja praticando ou deixando de praticar qualquer ato.

Com efeito, para que o mencionado direito constitucional tenha efetividade, é necessário que se assegure ao cidadão que, mesmo estando na condição de testemunha, no âmbito de inquérito policial ou parlamentar, investigação ministerial, ou processo judicial ou administrativo ou qualquer outro procedimento estatal, tenha ou não prestado compromisso de dizer a verdade, não possa ser compelido a praticar ato do qual possa resultar em produção de prova que lhe incrimine.

Veja-se, nessa linha julgado do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que

…assiste, a qualquer pessoa, regularmente convocada para depor perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de se manter em silêncio, sem se expor – em virtude do exercício legítimo dessa faculdade – a qualquer restrição em sua esfera jurídica, desde que as suas respostas, às indagações que lhe venham a ser feitas, possam acarretar-lhe grave dano (‘Nemo tenetur se detegere’) (RTJ 180/1125, Rel. Min. Marco Aurélio).

O que se sustenta, nas presentes linhas, é que não apenas quando o cidadão figura como investigado ou acusado da prática de infração penal é que faz ele jus ao que expressa o brocardo nemo tenetur se detegere.

Também podem invocar tal franquia constitucional (artigo 5.º, inciso LXIII) pessoas que, figurando como testemunhas no procedimento onde são chamadas a depor ou participar de qualquer outro ato, possam sofrer, ainda que indireta e obliquamente, qualquer dano à sua esfera jurídica por respostas ou participação em ato de investigação ou apuração.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça declarou a nulidade de processo em que foi colhido o depoimento, na condição de testemunha, de adolescente que, no âmbito do juízo competente, era acusado da prática de ato infracional correspondente ao crime que se imputava ao réu do processo criminal (STJ, 6.ª Turma, Habeas Corpus n.º 330.559/SC. Rel. Min. Rogério Schietti Cruz).

Em processo que tramitava na Justiça Estadual, em Santa Catarina, um adolescente que fora apreendido na mesma ocasião em que preso em flagrante cidadão acusado de tráfico ilícito de drogas, foi ouvido, na condição de testemunha, no processo criminal movido contra o imputável, e, tendo manifestado desejo de permanecer em silêncio, foi advertido pela magistrada, de que, “se não falasse a verdade”, poderia “ser novamente apreendido”.

O adolescente acabou prestando declarações que serviram de fundamento probatório para a condenação criminal do adulto que respondia pela acusação em uma vara criminal.

Nada mais abusivo, ilegal e afrontoso à Constituição.

Ora, o adolescente figurava no polo passivo de processo onde se via acusado da prática do mesmo fato que, em processo criminal, se imputava a um adulto. Portanto, ainda que prestando depoimento formalmente na qualidade de testemunha, não tinha ele a obrigação de dizer a verdade, pela óbvia razão de que poderia estar, assim, produzindo prova contra si próprio. A rigor, apenas do ponto de vista formal era que figurava como testemunha, vez que nem mesmo poderia ter sido tomado o compromisso a que alude o artigo 203 do Código de Processo Penal.

Com inteira razão, o Superior Tribunal de Justiça, em voto da lavra do Ministro Rogério Schietti Cruz, no sentido de anular o referido processo criminal, tendo em vista que a condenação se fundamentava em prova ilícita. Observe-se trecho da ementa do mencionado julgado:

A busca da verdade no processo penal sujeita-se a limitações e regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional, cujo objetivo maior é a descoberta da verdade processual e constitucionalmente válida, a partir da qual se possa ou aplicar uma sanção àquele que se comprovou culpado e responsável pela prática de um delito, ou declarar sua inocência quando as evidências não autorizarem o julgamento favorável à pretensão punitiva.

Em verdade, tudo se resume no seguinte: a atividade persecutória estatal está vinculada a limites estabelecidos na lei e, principalmente, na Constituição Federal e em convenções internacionais internalizadas no direito brasileiro. Por mais nobre que seja uma atividade – e a atividade de investigar e processar criminalmente é nobilíssima –, ela não se escapa de prestar obediência às normas que regulam o devido processo legal.

Incumbe à polícia exercer a atividade investigatória, apurando a materialidade e autoria de infrações penais, de modo a oferecer subsídios para que o Ministério Público promova judicialmente a responsabilização dos acusados.

E incumbe especialmente ao Ministério Público, órgão titular da ação penal pública, produzir prova suficiente, e de forma lícita, para lograr obter uma decisão penal condenatória. Portanto, não basta que a prova seja suficiente. É indispensável que ela tenha sido produzida em estrita observância do devido processo legal. Vale dizer, a prova deve ter sido licitamente produzida.

Os tempos sombrios que vivemos acabam por estimular, em muitos operadores do direito, a crença de que os fins podem justificar os meios. Pior do que isso, há mesmo quem tenha perdido o senso de pudor. Viola-se a Constituição com a maior sem-cerimônia. Nem ruborizados ficam.

Oportuna é a advertência que, no STF, faz o Ministro Marco Aurélio:

A sociedade não convive com o atropelo a normas reinantes. O desejável e buscado avanço social pressupõe o respeito irrestrito ao arcabouço normativo. É esse o preço a ser pago – e é módico, estando ao alcance de todos – por viver-se em um Estado Democrático de Direito.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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