The Intercept Brasil: Glenn Greenwald não cometeu crime
The Intercept Brasil: Glenn Greenwald não cometeu crime
Em 30 de julho de 2019, no contexto de repercussão dos vazamentos da página The Intercept Brasil, as redes sociais repercutiram com humor ao novo e desconcertante diálogo do dia anterior (bastante explicativo) envolvendo o dispositivo “crime”, e o jornalista Glenn Greenwald, dessa vez protagonizado pelo porta-voz da Presidência da República, o General Otávio R. Barros.
Sobre Glenn Greenwald e a linguagem criminal, o jornalista do UOL (Guilherme Mazieiro) pergunta, em síntese, qual crime foi cometido por Glenn, indagando ainda qual seria a base da afirmação. No que é interrompido pelo General:
alguma dúvida sobre o crime?
O jornalista responde:
eu tenho, qual crime foi?
O discurso do General mostra-se profundamente circular, afirmando que “não há dúvida”. O diálogo gira e gira, e ao ser indagado novamente qual crime o jornalista cometeu, o General responde:
repito, alguma dúvida que houve o cometimento de um crime?
O jornalista ainda pergunta novamente, mas o General grosseiramente se desvia disso, e pede a próxima pergunta, sem conseguir sequer simular que respondeu.
O diálogo se torna ainda mais bizarro, com o General sublinhando “crime e ponto final”, de modo extremamente pobre, repercutindo na Internet inúmeras piadas sobre o baixíssimo nível verificado.
Esse diálogo tão bizarro e surreal é possível, na medida em que existe uma certa memória sobre o dispositivo “crime”, também não se podendo perder de vista a questão das condições de produção em sentido estrito (circunstâncias de enunciação, contexto imediato) e em sentido amplo, abarcando o contexto sócio-histórico ideológico, conforme destacado na Análise de Discurso francesa com ORLANDI (2015).
O estudo das histórias dos pensamentos criminológicos a partir de ANITUA (2010), que aborda o emergir do “poder punitivo” (consequentemente tratando de sua dinâmica) no continente europeu associado aos processos de centralização política, explicita de modo contundente as inúmeras conexões entre o nascimento da “linguagem criminal” e a consolidação do Estado moderno, articulando o novo desenho de poder em que se insere o “poder punitivo”, com a defesa do soberano e sua justiça, o que no Brasil pode ser bem complementado com a analítica abolicionista libertária tensionada pelo Nu-Sol, mergulhando ainda mais na questão da linguagem criminal e sua superação, interceptando-a e dissolvendo-a.
O senso comum criminológico compartilhado por autoridades da base do governo e amplos setores da sociedade reivindica a linguagem criminal tomando “crime” como ente ontológico transparente autoexplicativo.
Esse senso comum permite a visualização governista, nos vazamentos que estremecem os poderes estabelecidos (dessa forma, fragilizando seus agentes), uma conexão um tanto quanto óbvia com o dispositivo “crime”.
Dotados de uma imaginação autoritária associada à sedimentação ideológica obediente à justiça do soberano e suas autoridades (que reforçam a ideologia punitiva atrelada à razão de Estado e de governo), se conjectura não só pelo presidente Bolsonaro que, uma vez sendo alvejado esse núcleo de poder (do soberano e sua justiça), se está inequivocamente diante “do crime” e “do criminoso” (o que se torna ainda mais ironicamente explícito, observando-se que, não por acaso, Moro é o ministro da… Justiça… enxergando na linguagem criminal sua própria defesa e legitimação, como é o caso de um porta-voz… do governo e sua justiça).
A partir dessa convicção ideológica e vontade de verdade, forjam-se os processos de criminalização, com o auxílio de juristas que outrora seriam os técnicos do soberano, integrantes de sua burocracia e indispensáveis à sua justiça particular com vestes universais.
Em que pese, contudo, esse devaneio de obviedade, sobre Glenn ter cometido “o crime”, até então inexiste base sólida alguma nesse sentido, o que existe é o senso comum criminológico mais uma vez funcionando atrelado às suas conexões históricas e ideológicas, permitindo-se a circulação governista de discursos estruturados em fantasias punitivas, que não desistirão de manusear contra Glenn suas armas autoritárias.
REFERÊNCIAS
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias de los pensamientos criminológicos. Prólogo de E. Raúl Zaffaroni. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2010.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 15. ed. Campinas-SP: Pontes, 2015.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais, incluindo mais textos com análise dos conteúdos divulgados pelo The Intercept Brasil?
Siga-nos no Facebook e no Instagram.
Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.