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Thought Crimes: crimes premeditados

Por Diógenes V. Hassan Ribeiro

Dia desses estava vendo esse filmeThought Crimes – estrelado por Oliver Platt e Justin Bartha, de 2005. Oliver Platt exerce o personagem de um possível pedófilo, que estaria em permanente observação por condicional (não se sabe efetivamente qual a sua condenação anterior, talvez pornografia). Justin Bartha, o de um “stalker” de uma atriz famosa. Há outro ator que desempenha o papel de um artista, pintor, que na ânsia de obter a real impressão das pessoas, simula, com amigos, várias bombas, em caixas de sapatos, envolvidas com papel preto e com a palavra  “death” escrita, dispostas num ginásio esportivo.

O filme se desenvolve com um roteiro decorrente do ato terrorista de setembro de 2001, que derrubou as Torres Gêmeas, casualmente agora lembradas no excelente filme A travessia. Havia determinações políticas de severidade nas investigações e acusações em razão do clima de medo decorrente daquele ato terrorista. Os acusadores tinham a determinação de promoverem acusações fortes.

Recordando desse filme e tendo em conta o tema que desenvolvi na última coluna, sobre a vedação de excesso e de proteção insuficiente ligada ao controle de constitucionalidade e à hermenêutica, examinando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na definição de constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, especificamente os de posse e porte de armas, percebo que há grande conexão entre as motivações desses entendimentos.

A indústria cinematográfica americana, aliás, tem há tempos produzido filmes interessantes que analisam esses aspectos, como, por exemplo, Minority Report, de 2002, em que atua Tom Cruise. Neste filme, todos devem lembrar, havia os precogs, três paranormais que viviam em uma piscina com um líquido, onde eram mantidos permanentemente, na denominada divisão pre-crime. Assim, em 2054 não havia mais homicídios, pois os precogs sabiam antes do fato que ia acontecer e, então, os policiais agiam para evitar o homicídio, quando prendiam o “criminoso” antes da levar adiante a sua ação. Era uma situação de controle total.

Voltando ao filme Tought Crimes, a ideia é semelhante, pois tanto o suposto pedófilo que é preso porque possui um diário seu, próprio, e que ninguém deveria ler, no qual escreve algumas coisas pornográficas e que é detido e interrogado, mas felizmente há a participação de uma advogada de defesa muito atuante; nos mesmos termos o stalker é preso porque, por ser meio maluco, escreve centenas mensagens por e-mail para a sua musa e porque, em determinada ocasião, num desvario insano, procura por ela na sua casa, mas não a encontra e tem a prisão pedida pela mãe da atriz. Aquele artista que pinta as expressões das pessoas quando as fotografa depois do tumulto causado pelas simulações de bombas em caixas de sapatos também é preso. Em tais situações, nada acontece de concreto. No filme em que atua Tom Cruise por igual, nada aconteceria, pois os homicídios são evitados. As situações são diversas é certo. Neste filme o homicídio aconteceria; naquele outro filme nada, talvez, jamais acontecesse, mesmo sem a intervenção de qualquer terceiro.

Os crimes de posse e porte de arma de fogo, caracterizadamente abstratos, nada produzem no mundo concreto, mas basta possuir uma arma, ou apenas munição de armas, ainda que em reduzida quantidade, e o possuidor responderá um processo, podendo ser condenado, mesmo que jamais tenha passado pela sua cabeça a utilização da arma, a não ser, remotamente, para a sua defesa.

Na coluna passada, como disse, o voto que tratou do crime de armas (mais precisamente porte de arma desmuniciada), no âmbito da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, foi da lavra do Min. Gilmar Mendes, contra o voto do Min. Celso de Mello, foi proferido no HC 102.087-MG (não como constou naquela coluna, por erro, HC 102.287-MG),  e foi julgado em 28 de fevereiro de 2012. No voto do Ministro Relator, Celso de Mello, foi sustentado que o porte de arma de fogo desmuniciada e sem possibilidade de acesso imediato à munição não tem tipicidade, porque não atende ao princípio da ofensividade. Esse voto, como se sabe, ficou vencido pelo voto do Ministro Gilmar Mendes.

Nesses termos, vitoriosa, no âmbito do STF naquele caso, a tese da possibilidade de caracterização de tipicidade, portanto por configurar crime de perigo abstrato, contra a tese contrária, que abraçava o princípio da ofensividade em matéria penal como necessário para a configuração da tipicidade.

Diante desse quadro, o que se busca dizer, numa análise psicanalítica, filosófica e sociológica, é o que move esses sentimentos antagônicos, pois um deles leva à expansão do direito penal. Partamos de Sigmund Freud, na sua obra O mal-estar na civilização. Nessa obra, o pai da psicanálise menciona, no seu entender, as três fontes do nosso sofrimento: (a) a prepotência da natureza, (b) a fragilidade do nosso corpo e (c) a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade. Diz ele que nunca dominaremos a natureza e, portanto, devemos conviver com isso. A terceira fonte, todavia, é um sofrer incompreensível e que revela a nossa falibilidade, a nossa limitação psíquica, porque as nossas instituições – humanas – são falhas. Ele discorre longamente sobre essa fonte e o nosso sofrimento. A nossa tentativa de controlar a sociedade e consequente insucesso.

Zygmunt Bauman, na sociologia, em diversas obras, mas especialmente em Confiança e Medo na Cidade e Medo Líquido, desenvolve esse temas, que são exemplarmente tratados nas pesquisas da Profa. Renata Costa (PPGD/UNILASALLE/CANOAS) – Cultura do Medo. Com efeito, os crimes de perigo abstrato, assim como essa pretensão de controle sobre os pensamentos dos indivíduos, retratado naqueles filmes, e  a impotência geral da sociedade, leva a essa expansão do direito penal e, pior, essa expansão da tentativa de controle, expansão de interpretações que visam a normatizar por completo a sociedade, na noção de Jürgen Habermas percebida com a expressão que cunhou de colonização sistêmica do mundo da vida.

Ora, a superação da impotência humana estaria no reconhecimento da sua fragilidade quanto às forças da natureza e quanto à fragilidade do nosso corpo, assim como na finitude, esta conforme descrita por Martin Heidegger, na filosofia. E esse reconhecimento não há de significar complacência, ou resignação, talvez adotar outra atitude diversa que gere menos o mal e mais o bem.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2011.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

Professor e Desembargador

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