Tipos qualificados pelo resultado e proporcionalidade
Por Fábio da Silva Bozza
Em sentido clássico, crime qualificado pelo resultado é aquele cuja ação é realizada de forma dolosa, sendo que o resultado, mais grave, é imputado ao autor sem que se exija culpa como limite subjetivo.
Referido tipo de crime verifica-se, em regra, na combinação dolo/culpa (lesão corporal seguida de morte, como exemplo clássico), mas pode se verificar nas variantes dolo/dolo, como nas lesões corporais graves (art. 129, parágrafos 1º e 2º, CP) ou culpa/culpa, como no crime de desastre ferroviário culposo, com resultado de lesão corporal ou morte culposa (art. 260, parágrafo 2º e 263, CP)
Historicamente, decorre da teoria, criada no direito canônico, chamada versari in re illicita (permanecer em assunto ilícito), segundo a qual o agente responderá por qualquer decorrência de sua ação proibida, mesmo que aja sem culpa (ROXIN, 2003, p. 335).
A antiga crítica de se tratar de manifestação de responsabilidade objetiva em direito penal, por admitir atribuição de pena mais grave por resultado produzido sem o limite mínimo da culpa, resta superada pela atual redação do artigo 19, do Código Penal Brasileiro. No entanto, outras críticas devem ser objeto de reflexão.
Parte da literatura propõe a abolição dos crimes qualificados pelo resultado sob o fundamento de que se trata de violação aos princípios da proporcionalidade e culpabilidade, em razão das excessivas penas cominadas (CIRINO DOS SANTOS, 2014, p. 188; ROXIN, 2003, p. 331).
Outra parte propõe interpretação restritiva dos tipos penais a partir de critérios diversos. Roxin apenas admite a imputação do resultado mais grave se puder ser entendido como produto específico do risco criado pela ação dolosa fundamental (ROXIN, 2003, p. 333-334); Jescheck/Weigend exigem a previsibilidade do resultado mais grave (JESCHECK/WEIGEND, 2002, p. 280), critério seguido pela literatura brasileira; e Otto entende que, para definir o resultado como realização do perigo da ação dolosa precedente, é necessário recorrer à ideia de perigo específico do tipo-base como critério limitador (apud, CIRINO DOS SANTOS, 2014, p. 189).
Assim, a imputação do resultado mais grave nos crimes qualificados pelo resultado exige os seguintes requisitos: a) imprudência implícita na ação dolosa precedente, b) resultado qualificador como produto específico do risco criado pela ação dolosa anterior, e c) previsibilidade do resultado mais grave (CIRINO DOS SANTOS, 2014, p. 190).
Outra questão de fundamental importância se refere à pena a ser aplicada para os delitos qualificados pelo resultado, e a posição a ser tomada depende de interpretá-los como delitos autônomos ou como hipótese de concurso formal de delitos.
A doutrina majoritária (ver referências em TAVARES, 2003, p. 239) entende os crimes qualificados pelo resultado como uma categoria própria de tipificação, fundada, simplesmente, em razões de política criminal, razão pela qual se sustenta a necessidade de serem ignoradas referências aos delitos dolosos precedentes.
Jakobs afirma que não deve ser afastada em sua totalidade a ideia de fundamentar o aumento da pena no princípio versari in re illicita, pois “a lei pode imputar as consequências de uma ação defeituosa com maior rigor àquele que se move pelo terreno do proibido que àquele que se comporta dentro do permitido […]” (JAKOBS, 1997, p. 398).
Por sua vez, Jescheck/Weigend fundamentam o agravamento da pena na especial perigosidade que é inerente à ação precedente, “quando o perigo típico conectado com o fato se materializa em um resultado lesivo” (JESCHECK/WEIGEND, 2002, p. 279).
Ambos pensamentos servem para justificar a consideração dos crimes qualificados pelo resultado como delitos autônomos e, consequentemente, o desproporcional aumento de pena, e não como hipóteses de concurso formal de delitos.
Tavares afirma que a gravidade do injusto pode ser determinada com base na própria conduta ou com base na cominação da pena. Quando se avalia a gravidade do injusto utilizando-se como referência a própria conduta, deve-se levar em consideração a sua realização no mundo fenomênico e seus efeitos reais, e referida avaliação está associada à finalidade da norma. Ao se avaliar com fundamento na pena, leva-se em conta apenas decisões de política criminal (TAVARES, 2003, p. 242).
Como o direito penal deve ser entendido como limite à política criminal (Liszt), bem como que o centro da ordem jurídica é o ser humano (art. 1º, III, CR), somente é possível admitir uma interpretação dos delitos qualificados pelo resultado como instrumentos de proteção do indivíduo frente ao poder punitivo estatal.
Dessa forma, apenas seria possível admitir a autonomia de referidos tipos penais quando a pena prevista no tipo for igual ou inferior à pena que seria cabível segundo as regras do concurso formal de crimes. Afinal, trata-se de uma conduta que produz dois ou mais resultados.
Em síntese, a melhor interpretação dos delitos qualificados pelo resultado, para que se observe o “princípio” da proporcionalidade, deve ser assim sistematizada: a) quando a ação precedente e o resultado forem produtos de dolo, se o tipo penal determinar uma sanção menos grave do que a que seria cabível em caso de concurso formal impróprio, deve-se aplicar a sanção prevista no tipo penal específico, e b) quando a ação precedente decorre de dolo (como regra) ou culpa (excepcionalmente), e o resultado mais grave decorre de culpa, deve-se observar a regra do concurso formal próprio, exceto se o tipo penal específico determinar uma pena menos grave do que a que seria cabível segundo a regra do artigo 70, do Código Penal. Nessas hipóteses, deverá o magistrado verificar cada caso concreto.
REFERÊNCIAS
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 6. ed., Curitiba: ICPC, 2014.
JAKOBS, Günther. Derecho Penal: Parte General. Tradução Joaquim Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzales Murillo. 2. Ed., Madrid: Marcial Pons, 2007.
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. Tradução de Miguel Olmedo Cardenete, 5. ed., Granada: Comares, 2002.
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito. Traducción de Diego-M. Luzón Peña; Miguel Díaz y Garcia Conlledo; y Javier de Vicente Remesal, Madrid: Civitas, 2003.
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003.