Sobre a titularidade dos direitos humanos
Sobre a titularidade dos direitos humanos
O texto desta semana será sobre Direitos Humanos. Primeiro, por conta do fato de que é impossível falar de Direito Penal sem pensar diretamente em direitos humanos. Segundo, pois vivemos um momento de repleta discussão sobre a titularidade destes direitos. Quem seriam ou deveriam ser os titulares dos direitos humanos? Direitos humanos pra humanos “direitos”?
O Direito Penal talvez seja um dos ambientes de maior relevância aos direitos humanos. Por colocar o Estado em uma posição de total superioridade em relação ao indivíduo, retirando um de seus direitos básicos que é a liberdade, é no âmbito penal que se tem talvez a aplicabilidade mais imediata de tais direitos.
Por conta disso, provavelmente seja inerente ao estudo do Direito Penal também a análise dos ditames dos direitos humanos. Não se deve cogitar estudar, quiçá analisar, as questões criminais sem ter por detrás o arcabouço determinado pelo diploma internacional de direitos humanos.
Para tanto, deve-se partir da simples leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Este é o passo mais elementar no estudo destes direitos e deveria ser de completa obrigatoriedade para qualquer um que trafegue pela área criminal.
A análise do texto é fundamental. Como sustenta Lenio Streck (2006), não se “pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”. O autor quer afirmar que devemos coerência ao sentido do texto e à sua amplitude conforme foi proposto pelo legislador.
Acontece que nem tudo é relativo. Há verdades, e, mais do que isso, há critérios a partir dos quais se pode dizer qual é a verdade. Direitos humanos, direitos fundamentais, devido processo legal são conquistas civilizatórias. Se eu digo que não há verdades, como posso sustentar que é verdade que não há verdades? Se digo que todos mentem, sou um mentiroso; se digo que se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, estou dizendo aos leitores que o que digo nada significa. Chegamos nessa estupidez institucionalizada porque permitimos que se deflagrasse, no Direito, a ideia de que respeitar o texto da lei significa uma aplicação mecânica, que proíbe a interpretação. Ora, é justamente e somente a partir da interpretação que se chega na verdade! Acreditar na possibilidade da “letra fria” [sic] da lei é coisa ainda do século XIX. Não se trata disso. Da ideia de que estamos condenados a interpretar não se segue que vale tudo, e que o intérprete seja livre pra atribuir ao texto o sentido que quiser. Interpretar autenticamente significa respeitar a autoridade da tradição a partir da qual se pode chegar na resposta correta. A quem interessa essa ideia de que se pode dizer qualquer coisa? É simples. Àqueles a quem cabe dizer essa coisa, seja ela qual for. Engana-se quem acha que o relativismo é uma arma da democracia, que permite a pluralidade de ideias; é justamente o contrário: é o relativismo que autoriza que, aquele que detém o poder, diga o que bem entender, o que bem quiser, e o azar é todo nosso. Porque dissemos que tudo era relativo […] já há quem diga — li isso na grande mídia (e não na deep internet) — que a proteção de direitos humanos é inimiga da polícia. Incrível ou crível? (STRECK, 2018).
Além dele e com base no que foi dito por ele, Aury Lopes Jr. (2014) também sustenta que em Direito e Processo Penal as palavras possuem importância e, mais do que isso, a escolha das palavras é importante, pois elas determinam os limites de interpretação pelo jurista: “as palavras dizem coisas”. Diante disso, as palavras inseridas pelos elaboradores da DUDH possuem fundamental relevância para se compreender as mensagens ali inseridas.
E quem seriam os titulares destes direitos humanos? O art. 1º talvez seja a principal norma constante na DUDH. Diz ela que
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. De imediato já podemos constatar que são titulares de direitos humanos todos os seres humanos, sem qualquer distinção, uma vez que “nascem livres e iguais.
Poderia surgir alguma dúvida sobre esta “igualdade” entre todos perante a DUDH, mas ela extermina qualquer discussão já no seu art. 2º, n. 1, ao afirmar que
Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
No âmbito criminal, o art. 10 garante que
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Continua no art. 11 que
1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
Os direitos humanos são
direitos protegidos pela ordem internacional (especialmente por meio de tratados multilaterais, globais ou regionais) contra as violações e arbitrariedades que um Estado possa cometer às pessoas sujeitas à sua jurisdição (MAZZUOLI, 2018, p. 30).
Possuem um caráter universal também na sua titularidade, necessitando para tanto apena a caracterização como ser humano para que se possa reivindica-los no plano jurídico interno e internacional, como sustenta Mazzuoli (2018, p. 34) (“[…] podem ser vindicados indistintamente por todos os cidadãos do planeta e em quaisquer condições, bastando ocorrer a violação de um direito seu reconhecido em norma internacional aceita pelo Estado em cuja jurisdição se encontre”) e também André de Carvalho Ramos (2017, p. 612) (“Os direitos humanos, por definição, são direitos de todos os indivíduos, não importando origem, religião, grupo social ou político, orientação sexual e qualquer outro fator”).
Durante todas as passagens da DUDH é repetida incessantemente a locução “todo ser humano”. A doutrina também é uníssona na amplitude dos titulares. Mais claro que isso é impossível. E por que será que tais concepções inseridas em um documento internacionalmente reconhecido desde 1948 ainda hoje são questionadas?
Será que aqueles que infringiram a lei penal não merecem a consideração como seres humanos pelo simples fato de terem se portado distintamente do que era esperado pela sociedade? Não é para isso que serve o Direito Penal, para tutelar estas ações contrárias às expectativas da coletividade?
E mais, é lógico esperar e exigir a recuperação e a reinserção social de indivíduos que antes mesmo de cumprirem sua pena já são excluídos da categoria de seres humanos? Pensar assim não é retornar a um estado de direito natural do qual evoluímos em que as pessoas que infringiam as normas sociais sofriam “morte social” com expulsão da sua comunidade?
A resposta a estes questionamentos se não está na DUDH, tem nela o seu caminho no art. 30, que encerra o diploma internacional:
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.
REFERÊNCIAS
LOPES JR, Aury. Teoria Geral do Processo é danosa para a boa saúde do Processo Penal. Consultor Jurídico. 2014. Disponível aqui.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 5. ed., rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018 (livro eletrônico).
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível aqui.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 4. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017 (livro eletrônico).
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
STRECK, Lenio Luiz. 2+2=22, KKK é de esquerda e temas como “galera, onde tem blitz?”. Consultor Jurídico. 2018. Disponível aqui.