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Tolerância administrativa e delitos ambientais: caso Samarco


Por Rafhaella Cardoso


Este ensaio pretende questionar até em que ponto a tolerância da administração pública ambiental diante dos últimos acontecimentos no caso da tragédia ambiental causada pela SAMARCO em Mariana-MG, terá impactos na aferição do injusto penal, já que, nesta situação, a análise do tipo penal ambiental depende de correlação com as normas do direito administrativo, há a presença da chamada “acessoriedade administrativa”(COSTA, 2009).

Sem dúvidas, de todos os casos de acessoriedade de ato administrativo nos delitos ambientais (ou seja, de dependência do direito penal em relação ao direito administrativo), o mais problemático envolvendo as licenças ou autorizações administrativas ambientais, é o que trata da dependência dos tipos penais de atos administrativos em que ocorre a denominada “tolerância administrativa”.

Isto se deve justamente ao fato de que, dentre os juristas administrativistas, uma das questões em que mais se encontram discrepâncias jurídicas é o tema do “silêncio administrativo”, ou seja, de qual seria a manifestação de vontade existente se a Administração se torna omissa quando lhe incumbiria manifestar-se de maneira comissiva acerca da autorização ou impedimento de determinada atividade potencialmente poluidora. Para Lobato, a tolerância é a omissão da Administração diante de atos de notoriedade e de atuação pública do particular que age em desacordo com os preceitos administrativos. Segundo o autor, os efeitos jurídicos desencadeados em razão da tolerância administrativa aos comportamentos autorizáveis, devem partir da característica de “vinculação” ou de “discricionariedade” do ato administrativo em tela (LOBATO, 2010, p. 151-154).

Poderia se ilustrar esta situação com o exemplo de um particular que resolve edificar em local proibido pela legislação ambiental, e, mesmo tendo dado entrada nos requerimentos junto ao órgão administrativo competente, este não se manifesta mesmo sabendo e tendo conhecimento do início das obras. Outra dificuldade surge quando, de atividades autorizadas ou não pelos órgãos ambientais, que estejam colocando em risco os bens jurídicos ambientais, as autoridades administrativas têm tomado conhecimento sobre o risco frequente da atuação dos particulares mas, se silenciam como se estivessem “tolerando” a atividade potencialmente poluidora e danosa.

Na verdade, há dois pontos necessários de distinção em relação ao silêncio da Administração: nas hipóteses em que a lei aponta a consequência jurídica da omissão e, naquelas em que a lei não traz qualquer referência. Na primeira hipótese, a lei pode apontar que o silêncio importa em anuência tácita ou em manifestação denegatória. Nestes casos, o silêncio importa em pretensão constitutiva ao agente. Porém, na maioria das vezes o próprio legislador não fez referência à consequência expressa ao silêncio do administrador, e, diante desta situação, verifica-se uma transgressão de prazos legais (quando pré-fixados para emitir o risco inerente e altíssimo das atividades nucleares irregulares), deve determinar que tais agentes respondam pelo ilícito penal.

De acordo com Carvalho Filho (2006, p. 82), esta temática ganhou força porque, a exemplo do direito civil, o silêncio importa em aceitação salvo quando a lei exigir manifestação expressa (art. 111 do Código Civil Brasileiro). Entretanto, no direito público, a interpretação deve ser distinta: se não há declaração de vontade do agente administrativo, não há que se falar em ato formal. Para Celso Antônio Bandeira de Mello(2005), se a Administração não se pronuncia, o silêncio jamais importará em ato ou em manifestação. Porém, como via garantida ao administrado, o Judiciário poderia inclusive suprir a ausência de manifestação se se tratar de ato vinculado. Caso fosse ato discricionário, o Juiz não poderia suprir a ausência de manifestação, mas poderia ordenar que a Administração o fizesse. Sobre tais apontamentos, Carvalho Filho(2006) discorda que, em tais casos, o Judiciário possa substituir a vontade da Administração, não importando se o ato fosse vinculado ou discricionário, pois, o que se deve fazer é impor à Administração, sob as penas da lei, que o emita em determinado prazo.

Rudolphi(1990), por exemplo, considera que a omissão da Administração em fazer cessar determinado comportamento não autorizado, gera uma permissão implícita ao indivíduo. No mesmo sentido, na Espanha, autores como García de Enterría e Fernández (1997, p. 163) diferenciam o silêncio administrativo “positivo”, onde a tolerância administrativa configura uma forma de omissão consciente e claramente intencionada; do silêncio “negativo”, onde a tolerância passiva representaria apenas um não-fazer da Administração, sem conotação constitutiva de ato. Parte da doutrina alemã afirma que, numa hipótese de tolerância informal, isto não teria relevância alguma para o direito penal ambiental.

Outra parcela compreende que há distinções entre tolerância ativa e passiva por parte da administração, na primeira, o não-fazer administrativo é consciente e decidido, e, portanto, pode ser interpretado como um ato autorizativo; sendo que, na segunda hipótese, ocorre um “mero-nada-fazer”, não se podendo afirmar quanto à autorização. Sobre esta situação, Heine se posiciona no sentido de rechaçar por completo que as tolerâncias administrativas tenham uma função equiparável às autorizações formais. Por isso sustenta que “as tolerâncias antijurídicas, enquanto tais, não podem ser reconhecidas como puníveis”(1997, p. 660). Ou seja, o Direito Penal não pode assumir as concessões da Administração, confirmando autorização onde não existe, sob pena de ofender os princípios do Estado de Direito.

A posição de Greco, entretanto, é a mais aconselhada diante dos preceitos específicos do Direito Penal em relação ao Direito Administrativo nas hipóteses de tolerância administrativa ambiental. O autor resolve esta questão da tolerância com base no princípio da confiança: isto é, se a administração, através da tolerância consciente, demonstra ao particular que não há nada de mais grave ou errado com a sua conduta, tal comportamento deve ser sim considerado lícito para o Direito Penal.

Similar a este entendimento, na análise da imputação objetiva trazida por Jakobs (1997), numa sociedade de riscos permissíveis e não-permissíveis, a atuação nos limites do princípio da confiança é causa de exclusão da tipicidade quando se puder demonstrar a confirmação de uma expectativa normativa legítima em relação a outrem. Ou seja, quando a Administração toma conhecimento do fato ou conduta do agente, e não toma nenhuma providência no sentido de obstá-la; se restar demonstrado que isso gerou no administrado uma expectativa legítima, de que a Administração não se opunha ao seu comportamento (tanto que não o impediu, embora ciente), a conduta será atípica diante da presença do risco permitido.

Transpondo-se estas lições para aplica-las ao caso da tragédia ambiental da VALE-SAMARCO, um detalhe chamou a atenção: seria esta uma situação em que houve tolerância ou falta de fiscalização da Administração Pública? Em caso de comprovada a tolerância administrativa, qual o papel desta nos delitos ambientais que envolvem a acessoriedade administrativa com referência a licenças ou autorizações? A Samarco quando deixou de obter autorização para operar a barragem do Fundão, acabou por criar e incrementar riscos juridicamente não proibidos, ainda que em posse de um licença inicial, aos olhos omissos da Administração Pública Ambiental? Certamente que a estas perguntas, várias são as soluções jurídicas a serem apresentadas.

Ante o exposto, conclui-se que a tolerância administrativa tem sim um significado normativo para a compreensão do injusto penal e que, em alguns casos pode sim representar uma omissão relevante por parte dos poderes públicos, favorecendo-se à prática delituosa pela falta de fiscalização constante e devida em grandes empresas que provocam impactos ambientais. Porém, negativamente, gera ao particular, em alguns casos a “confiança” de que suas atuações são lícitas, excluindo-se assim a tipicidade do crime, a não ser que houver a criação de riscos juridicamente proibidos, como parece ter dado no caso em comento.


REFERÊNCIAS

COSTA, Helena Regina Lobo da. Os crimes ambientais e sua relação com o direito administrativo. In: Celso Sanchez Vilardi; Flávia Rahal Bresser Pereira; Theodomiro Dias Neto. (org.). Direito penal econômico – análise contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2009.

FILHO, Jose Dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006.

GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo. 5. ed., Madrid: Civitas, 1997 (vol. I); 1998 (vol. II).

GRECO, Luís. Direito Penal e Direito Administrativo no Direito Penal Ambiental: uma introdução aos problemas da acessoriedade administrativa. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 58, pp. 152-194, jan-fev 2006.

JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en el derecho penal. Dirección Editorial de Dr. Rubén Viliela. Buenos Aires: Editorial AD HOC, 1997.

HEINE, Günther. El derecho penal ambiental alemán y español: un estudio comparado desde la perspectiva de consideración de la futura convención europea sobre el derecho penal del medio ambiente. In: Cuadernos de Política Criminal, Madrid, n. 63, p. 653-667, 1997.

LOBATO, José Danilo Tavares. Acessoriedade administrativa, princípio da legalidade e suas (in)compatibilidades no direito penal ambiental. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 18, n. 83, pp. 120-162, mar./abr. 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

RUDOLPHI, Hans-Joachim. Primat des Strafrecht: Anspruch und Umweltschutz. Neue Zeitschrift für Strafrecht. Heft 5. 4 Jahrgang München: Verlag C. H. Beck, 1990.

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Rafhaella Cardoso

Advogada (SP) e Professora

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