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A Lei 13.344/2016 e o enfrentamento ao tráfico de pessoas

O tráfico de pessoas é um tema constante na comunidade internacional: existem instrumentos internacionais vigentes sobre o tema desde o início do século XX. Em 1921, a Liga das Nações promoveu a Conferência Internacional sobre o Tráfico de Mulheres e Crianças, com o objetivo de harmonizar ações de diversos governos, para agirem em comum acordo no combate a esse tipo de tráfico de caráter internacional, contando com a participação do Governo brasileiro.

Resultaram dessa Conferência as seguintes recomendações: 1) proteger a mulher ou a criança migrante dos perigos, após terem começado sua viagem, quando viram presas fáceis para o traficante; 2) que a regulação relativa à viagem e admissão do migrante não resultasse na separação de membros da mesma família; 3) a facilitação do desembarque dos navios e indicação de hotéis de confiança para emigrantes; 4) que uma mulher qualificada fosse especialmente encarregada de cuidar dos interesses de mulheres e crianças a bordo de todos os navios de emigrantes; 5) que as companhias de navegação autorizassem a distribuição a bordo dos navios de informações sobre este tráfico; 6) que estas medidas governamentais contra o tráfico não interferissem na liberdade das mulheres em idade legal (RABELO, 2014).

A Conferência de Emigração e Imigração, em 15 de maio de 1924, por sua vez, teve como tema importante a questão dos indesejáveis e, nessa época, já era identificado com essa categoria as “prostitutas”, os “cafetões”, os “mendigos” e doentes. A Conferência debateu o transporte de emigrantes, higiene e serviços sanitários, mas também  a necessidade de assistência especial a mulheres e crianças.

Verifica-se, portanto, uma forte preocupação com a disciplina dos corpos femininos, colocados ao lado “das crianças” para fins de “proteção” -, e passíveis de controle pela família, pela sociedade, pelo Estado e também pelas Organizações Internacionais, o que também veio a influenciar a própria criminalização do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual pelo Código Penal de 1940.

 Segundo o Código de 1940, tráfico internacional de pessoas correspondia justamente ao tráfico de mulheres para fins de prostituição independentemente do emprego de violência, grave ameaça ou fraude em face da mulher (art. 231), e a pena mínima cominada era de quatro anos de reclusão. Assim, o tráfico era definido apenas como a migração de prostitutas, contribuindo para a repressão do movimento das profissionais do sexo e para sua revitimização.

Já na década de 90, o tema do tráfico de pessoas ganhou nova força na agenda política internacional, em especial por influência dos Estados Unidos. Na linguagem de Antonio Negri, se tornou um novo “mandamento imperial”, e passou a ser discutido em torno de questões como a delimitação do próprio conceito de tráfico de pessoas, importante justamente para funcionar como “mandamento de criminalização”, utilizando a terminologia de Delmás-Marty, e também para os mecanismos de cooperação penal internacional.

Finalmente, o Protocolo de Palermo (Protocolo Complementar à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, promulgado pelo Decreto 5.017 de 12 de março de 2004), define o tráfico de pessoas como:

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O Protocolo de Palermo prevê como um de seus objetivos o combate ao tráfico de pessoas e a cooperação entre os Estados-partes. Além disso, impôs a criminalização da conduta definida como tráfico de pessoas, e esboçou o que a doutrina chama de “4 Ps”: prevenção, persecução (repressão), proteção e parceria entre Estado e sociedade civil.

No Brasil, em cumprimento às obrigações assumidas pela raticação do Protocolo de Palermo, foi editada a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, edificada com a participação de setores do governo e da sociedade civil (Decreto 5.948/2006 e Decreto 7901/2013, que instituiu o Comite Nacional de Enfrentamento ao tráfico de pessoas – CONATRAP).

Além disso, a Lei 12.015/2009 reformou o Código Penal Brasileiro para acrescentar o elemento nuclear do tipo “exploração sexual” no caput do art. 231. Manteve, ainda, a “prostituição”, bem como a dispensabilidade da análise do consentimento: mesmo que a vítima esteja de acordo e tenha plena consciência de irá se prostituir, e que não permaneça em condições degradantes, tampouco tenha sua liberdade cerceada e seus documentos retidos, vai configurar tráfico de pessoas.

No mais, foi regulamentada a permanência no Brasil a estrangeiro considerado vítima de tráfico de pessoas e/ou de trabalho análogo ao de escravo (Resolução Normativa CNIg 122/2016, que revogou a Resolução 93/2010, que condicionava a permanência à colaboração com o processo penal), também em cumprimento ao Protocolo no que concerne à proteção à vítima.

Finalmente, a Lei 13.344, de 6 de outubro de 2016, com vacatio legis de 45 dias, pretende ser um eficaz instrumento de efetivação dos “4ps” previstos no Protocolo. O diploma ampliou o âmbito de proteção e incluiu princípios como “a atenção integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou processos judiciais” (art. 2o, VI).

Para a assistência integral às vítimas e redução de danos, previu a “preservação do sigilo dos procedimentos administrativos e judiciais” (art. 3o, VIII), a assistência jurídica, o acolhimento e abrigo provisório, dentre outras medidas necessárias à interrupção da situação de exploração ou violência (art. 6o). Também acrescentou o art. 18-A à Lei 6815/1980 (Estatuto do Estrangeiro), relativo à concessão de residência permanente às vítimas de tráfico de pessoas no território nacional.

Quanto à repressão, revogou os arts. 231 e 231-A do Código Penal, e incluiu o art. 149-A, que assim passou a definir tráfico de pessoas:

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Um avanço notório do novo diploma foi a desvinculação do tráfico de pessoas com a disciplina do corpo feminino independentemente de seu consentimento. Assim, a lei foi ao encontro do Protocolo de Palermo ao prever que o consentimento da vítima é irrelevante para a caracterização do fato como tráfico de pessoas desde que o perpetrador se utilize de ameaça, força, coação ou se aproveite da situação de vulnerabilidade da vítima.

Os arts. 8o a 11 alterou no Código de Processo Penal, de forma a ampliar o rol de medidas assecuratórias e de coleta e gestão de provas. O art. 12, por sua vez, restringiu a concessão de livramento condicional ao condenado por tráfico de pessoas para somente após cumpridos mais de dois terços da pena, colocando a modalidade ao lado dos crimes hediondos, da prática de tortura e do tráfico de drogas.  Criou-se, com isso, um “microssistema” de direito penal e processual penal para o enfrentamento desta espécie delitiva, sendo impossível não rememorar os microssistemas dos crimes hediondos, do crime organizado e do tráfico de drogas, e suas consequencias nefastas.

Espera-se, do Poder Judiciário e do Poder Executivo, que essa lei não seja aplicada para o fortalecimento de um paradigma da “guerra ao tráfico de pessoas”, e que não surjam efeitos devastadores como os da política da “guerra às drogas”. Para isso, os mecanismos de proteção à vítima e de justiça restaurativa devem ser efetivamente implantados, em detrimento do enfrentamento da questão através da violação das garantias penais e processuais penais, e da exclusão da vítima do processo penal e da proteção estatal.


REFERÊNCIAS

RABELO, Fernanda. A travessia: imigração, saúde e profilaxia internacional (1890-1926). Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde da FIOCRUZ. Rio de Janeiro: 2010, p. 279-281. Disponível aqui. Download em: 11 de maio de 2014.

Ana Luisa Zago de Moraes

Defensora Pública Federal (RS)

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