ArtigosPolítica Criminal

Tráfico sem drogas: a posse de cafeína e o artigo 33 da Lei de Drogas

Tráfico sem drogas: a posse de cafeína e o artigo 33 da Lei de Drogas

O crime de tráfico de drogas está tipificado no artigo 33, caput, e § 1º, da Lei 11.343/06, de modo que a sua configuração não exige a prática do ato de vender, existindo diversas condutas que também caracterizam o tráfico.

Na realidade, temos, apenas no caput, 18 (dezoito) condutas que, se praticadas, configuram o crime.

Além da conduta praticada ser uma daquelas constantes no tipo penal (art. 33, caput, e § 1º), também é necessário olhar para a substância que é objeto de uma dessas condutas, eis que, diante de entorpecentes ou psicotrópicos (drogas, como a lei denomina), indispensável que, por se tratar de uma norma penal em branco, que necessita de uma complementação, essas substâncias estejam relacionadas em um complemento, que pode ser outra Lei ou até mesmo uma portaria ou outro ato administrativo.

No caso da Lei de Drogas, essa complementação está na Portaria da ANVISA, n.º 344/98, mais especificamente em suas listas F1 e F2, conforme estabelece o artigo 66 da Lei de Drogas.

A título de exemplo, posso citar como droga, conforme regulamenta a Portaria 344/98, a “maconha”, a “cocaína”, o “LSD”, o “lança perfume”, além de várias outras, todas de uso proscrito, proibido.

Além do caput, temos no artigo 33, § 1º, da Lei 11.343/06, algumas figuras equiparadas, contidas em quatro incisos, sendo que uma delas se refere a quem:

importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

Assim, as condutas contidas no tipo penal, no caso acima, não dizem respeito à substância entorpecente em si, mas à matéria-prima, insumo ou produto químico que tem como destino o preparo de drogas.

Para nós, no presente momento, importa analisar: 

“Insumo”, segundo definição do dicionário, é “Todo tipo de elemento que entra no processo de produção de mercadorias e/ou serviços, matérias-primas, equipamentos, capital, trabalho humano etc”.

Ou seja, é a substância ou produto necessário, mas não indispensável para a produção ou preparação da droga, podendo agir para facilitar ou agilizar a produção, embora possa ser produzida sem esse ingrediente.

“Matéria-prima” é a “Substância bruta principal, insumo básico a partir do qual se fabrica determinado produto ou bem”.

Portanto se trata daquela substância que possibilita a extração ou a produção de entorpecentes, de modo que não é preciso que a matéria-prima em si tenha a capacidade de produzir dependência ou esteja relacionada na portaria da Anvisa.

Já “Produto químico” é aquilo resultante de uma composição química, como o éter e a acetona.

O motivo principal que me levou a escrever este texto é a recente decisão proferida pela 5ª Turma do STJ, ao julgar o Habeas Corpus n.º 441.695 – SP. Nessa decisão, o entendimento foi no sentido de que a posse de cafeína seria conduta suficiente para a configuração da figura equiparada ao tráfico de drogas, do artigo 33, § 1º, inciso I, da Lei 11.343/06, pois seria considerada um insumo e/ou uma matéria prima para a produção da cocaína.

Essa decisão é interessante, pois ela possibilitou a condenação de um indivíduo sem que ele tenha praticado uma conduta relacionada ao material entorpecente em si, de uso proscrito. A condenação, nesse caso, foi em decorrência de uma substância costumeiramente lícita, de uso permitido, que é a cafeína, mas que, diante das circunstâncias dos fatos, a conclusão foi no sentido de que aquele material (originalmente lícito), seria utilizado para fins de produção de drogas (mais especificamente a cocaína).

A primeira coisa que me chamou a atenção diz respeito ao fato de que a própria decisão não conseguiu concluir se a cafeína, no caso concreto, se tratava de um insumo ou de uma matéria prima, eis que ao mesmo tempo que afirmava se tratar de insumo, utilizava decisões pretéritas que concluíam se tratar de matéria prima.

Em uma análise dos conceitos de “insumo” e de “matéria prima”, já expostos anteriormente, percebe-se que a cafeína não pode ser considerada matéria prima da cocaína, eis que a referida substância entorpecente é produzida a partir da coca. Logo, a coca é a matéria prima da cocaína, é daí que vem a sua extração, a sua produção.

Logo, não sendo uma matéria-prima, estamos diante de um insumo utilizado para a produção da “cocaína”, isto é, uma substância que incrementa o entorpecente, potencializa, mas é dispensável para a produção da droga, e não é a substância bruta que deu origem à “cocaína”.

STJ: posse de cafeína pode caracterizar tráfico de entorpecente

Em que pese se trate de um insumo químico, não é possível considerar a cafeína como sendo uma das substâncias que constam no rol da Lista D2 da Portaria da Anvisa, lista responsável por estabelecer qual é a relação dos “INSUMOS QUÍMICOS UTILIZADOS COMO PRECURSORES PARA FABRICAÇÃO E SÍNTESE DE ENTORPECENTES E/OU PSICOTRÓPICOS”.

Novamente, a cafeína não é uma substância precursora para a fabricação e a síntese da “cocaína”, ela é apenas um incremento à produção da droga, droga essa que pode perfeitamente ser produzida sem a cafeína.

Portanto, apesar da existência do argumento de que para a substância se configurar como insumo para a produção de drogas é preciso que esteja relacionada na Lista D2 da Portaria 344/98 da ANVISA, por se tratar de norma penal em branco, ao meu sentir, o mais correto é entender os insumos químicos, da Lista D2 como sendo os produtos químicos a que o artigo 33, § 1º, inciso I, da Lei 11.343/06 faz menção.

Por mais estranho que possa parecer uma condenação por tráfico de drogas sem que alguma droga tenha sido objeto direto da conduta, é possível que a “cafeína”, se caracterizada como “insumo”, acarrete em uma condenação pela figura equiparada ao tráfico de drogas.


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.

Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.

Pedro Magalhães Ganem

Especialista em Ciências Criminais. Pesquisador.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo