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Tribunal do júri: argumentos pró e contra

Certamente um dos assuntos mais polêmicos na seara processual penal diz respeito à legitimidade do Tribunal do Júri julgar os crimes dolosos contra a vida. O termo correto é realmente a “legitimidade”, uma vez que direito fundamental e cláusula pétrea da nossa Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXVIII), ainda que discutível a contrariedade do rito com outras normas constitucionais, bem como a desnecessária previsão de um rito processual como garantia fundamental, não se pode negar o caráter de constitucionalidade, no mínimo formal, do instituto.

Em razão do curto espaço deste texto, ousamos não adentrar no caráter histórico do Tribunal do Júri, bastando referir que herdou-se da tradição inglesa o procedimento que, depois, adaptou-se legislativamente a uma realidade local, inclusive no que diz respeito aos crimes eleitos para serem apreciados por este rito: crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, aborto, induzimento, instigação e auxilio ao suicídio).

Pois bem, talvez esta seja a primeira polêmica: Por qual razão somente estes crimes tem um rito diferenciado de julgamento? Muitos asseveram que é porque “qualquer um pode cometer estes crimes”. No entanto, qualquer pessoa pode cometer qualquer crime! Veja-se, por exemplo, numa situação de desespero, uma pessoa sem qualquer antecedente criminal e sem qualquer envolvimento com atividades ilícitas pode vir a cometer um furto famélico para salvar a vida de seu filho. Alguns dirão: “ah, mas aí há uma excludente de ilicitude” (estado de necessidade). Sim, mas o processo não correrá no rito do Tribunal do Júri, perdendo o sentido da argumentação acima levantada para a competência destes crimes perante o Júri.

Num segundo momento, podemos levantar a seguinte bandeira em defesa do júri: “os jurados são mais sensíveis que o juiz para julgar este tipo de causa” ou, dito de outra forma: “é melhor ser julgado por seus pares”. De fato, os jurados são leigos e não tem a vivência diária com audiências, despachos, decisões, sentenças que poderiam mecanizar ou “esfriar” o tratamento do magistrado com a causa. Mas, a despeito dessa “frieza” ser vista como uma característica negativa do julgamento pelo juiz singular, na verdade ela pode ser vista como salutar para um julgamento justo, técnico, que não se deixa levar pelos apelos emotivos da acusação ou da defesa.

Ademais, o juiz vive (ou deveria viver) no seu tempo, na sua comunidade, cidade, estado e país em que vive, observando a realidade a sua volta e a interpretando nos processos a que é chamado a julgar. Ou seja, em tese, não é um alienígena àquilo que o circunda. E, não esqueçamos, o juiz tem total independência, sendo a ele oportunizadas as garantias da inamovibilidade, irredutibilidade e vitaliciedade. Os jurados, por sua vez, sequer são pagos pelo serviço prestado, o que pode representar até mesmo certo desinteresse ou maior chance de serem suscetíveis à corrupção.

E, por fim, dizer que no júri o julgamento é mais equilibrado por ser julgado por seus pares não parece convincente. Isto porque os jurados não necessariamente representam paridade com aquele que está indo a julgamento. Os jurados não conseguem representar a dimensão multicultural mesmo de uma pequena cidade. E, por vezes, pertencem a certos nichos bem definidos, como funcionários públicos e aposentados.

Na esteira da questão acima, podemos apontar ainda um terceiro motivo em defesa do júri: “no júri é possível julgar sem estar preso ao processo, pois não é necessário motivar o julgamento”. Aqui reside o calcanhar de Aquiles do julgamento pelo júri: pode-se condenar ou absolver por qualquer razão. Fica evidente que os preconceitos mais obscuros podem aflorar no “sim” ou “não” do jurado, mas sem que ele precise se expor. Estar “presa ao processo” é o mínimo que se espera de uma sentença bem motivada. Por qual razão então em determinados crimes essa garantia, também constitucional (art. 93, inciso IX, CF), cai por terra? Isso sem falar na influência que a mídia pode exercer nos casos de maior repercussão. Se pode julgar pelo que se leu no jornal ou na revista, ainda que no dia do júri não se apresentem elementos suficientes para tomar uma decisão no mesmo sentido.

Um quarto ponto que pode ser erguido em defesa do júri é que tratam-se de 7 (sete) jurados e 07 (sete) cabeças pensam mais que apenas uma. Em contraponto poder-se-iá dizer que seria melhor tratar um problema no coração por um cardiologista ao tratar o mesmo problema por 07 (sete) traumatologistas ou, pior, por aqueles que sequer tem formação básica em medicina ou, voltando ao nosso caso, em direito. Analogias à parte, é importante verificar que nem sempre a forma como a maioria da população pensa é a forma mais digna de resolver conflitos na esfera jurídica. Basta analisar as pesquisas e opinião sobre pena de morte no Brasil, onde a maioria se mostra a favor, mesmo sendo vedada por igual cláusula pétrea de nossa constituição (art. 5º, XLVII, da CF).

Um quinto elemento a ser destacado é a utilização do Tribunal do Júri para “elevar o sentimento cívico dos seus participantes” ou realizar um ideal de participação do povo no Poder Judiciário, afinal, todo poder emana dele. Inicialmente, contra-arguntamos que esse sentimento cívico, se fosse legítimo, não deveria ser obrigatório, tal qual é a convocação dos jurados, mas sim voluntário. Por outro lado, também devemos lembrar que colocar a liberdade de um indivíduo a julgamento por leigos apenas para cumprir um dever político do Estado de participação popular nas decisões, não nos parece a maneira mais justa de equilibrar este sistema democrático.

Tal qual ocorre no Poder Executivo e no Poder Legislativo, há representantes do povo para os julgamentos e, é interessante observar, que o Poder Judiciário é o mais rígido na escolha e qualificação destes representantes, que passam por duros concursos públicos para exercerem sua profissão.

Por fim, um sexto ponto polêmico que merece destaque diz respeito à concepção cênica do júri: juiz e promotor em um andar acima da defesa, lado a lado, sendo o último o mais próximo dos jurados. Recentemente diversas decisões têm compreendido que a defesa, por um princípio de paridade de armas, deve ser colocada no mesmo patamar da promotoria. Na prática isso significa deslocar a defesa para ficar ao lado esquerdo do magistrado, enquanto o Ministério Público fica a sua direita. Uma vez que no rito não é necessário motivar a decisão, os jurados podem sim se influenciar pela proximidade e, por vezes, pelo grau de intimidade que envolve o magistrado e a promotoria.

E é natural que, como seres humanos que são, juiz e promotor acabem criando laços afetivos ou de labor mais íntimos do que aqueles que defesa tem com o juiz, sobretudo a defesa constituída, que não está diariamente realizando as audiências que os dois primeiros estão. E aí está o cuidado que o magistrado deve ter: reconhecer que essa intimidade existe e não a deixar transparecer/influenciar para o julgamento e para os jurados.

Concluímos essa pequena reflexão crítica para deixar claro que não elegemos a simples retirada do júri do sistema jurídico brasileiro como solução às distorções demonstradas. Nosso objetivo é semear a discussão salutar entre aqueles que defendem e aqueles que criticam o instituto do Tribunal do Júri para, através deste diálogo, melhorar o sistema e alcançar julgamentos cada vez mais justos.

Raccius Potter

Advogado (RS)

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