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O Tribunal do Júri faz justiça?

O Tribunal do Júri faz justiça?

Antes de qualquer coisa, é indispensável alertar que falar em Justiça, por si só, já demandaria um estudo de fôlego que, obviamente, não cabe e nem mesmo é objeto deste reduzido artigo. Assim, tomemos o predicado Justiça em seu sentido mais atécnico, ou seja, simplesmente como aquilo que é certo e adequado ao senso comum de Justiça.

Desde tempos imemoriais são corriqueiras as acirradas discussões envolvendo a justiça e/ou injustiça declarada nas decisões do Tribunal do Júri, e o passar dos anos certamente não tem contribuído para resolver a celeuma, tanto que ainda hoje há aqueles que questionam a legitimidade (que é democrática) e a própria existência do júri popular.

Dentre os defensores e adversários da instituição do Júri, é mais ou menos pacífico que a controvérsia cinge-se, principalmente, ao seguinte ponto: os adeptos do júri assinalam que o julgamento popular afasta o rigor formal e severo do juiz togado, e seus censores alegam que os jurados não são capazes de julgar, pois se tratam de pessoas leigas.

Em nosso sentir a decisão do juiz togado e do jurado constituem, basicamente, formas de julgar diferenciadas, cada qual fundada em razões já devidamente ponderadas pelo constituinte originário quando optou por assentá-las em nossa Constituição.

A análise que se sugere, doravante, segue razões pragmáticas.

Com efeito, é fato que o juiz togado está atrelado ao texto frio da lei; julga conforme o direito, às vezes desconsiderando a particularidade humana que impulsiona ao crime; permanece alheio às vicissitudes da vida, à desgraça, às privações e dramas que, de tempos em tempos, colhem de surpresa o ser humano, especialmente os menos favorecidos.

Edmundo Oliveira, apud Tourinho Filho, relembra que a rotina profissional do togado reduz sua sensibilidade:

O juiz togado tem um defeito que o jurado não tem, o calo profissional, que, na rotina, pode desanimá-lo, endurecê-lo, com o risco de, ao fim de certo tempo, já não o comoverem as grandes dificuldades da complexa criatura humana e, assim, em decorrência, faltar-lhe o equilíbrio essencial. (TOURINHO FILHO; 2012, p. 772).

Nesta conjuntura retratada não parece exagerado afirmar que, imune às agruras típicas das complexas relações humanas, o juiz de toga aplica a lei, observando, sim, as provas, mas desconsiderando, por vezes, o contexto social do fato. Será que aplicar o direito tão reduzidamente, preto no branco, fato à norma, corresponde aos anseios da justiça?

Nem a lei é sempre boa, tampouco os juízes sempre serão justos.

Os jurados, por sua vez, atuam de uma maneira distinta, fazem um julgamento mais humano; analisam os fatos em toda a sua extensão (dentro e fora dos autos) para após, segundo sua consciência, apontar para o Judiciário – no qual exercem a democracia popular – e dizer se, naquele caso específico, é necessária ou não a responsabilização penal.

O saudoso Romeiro Neto, defensor compulsivo do julgamento popular, assim se manifestava em sua época:

O júri tem, nos quesitos formulados, os meios para decidir humanamente a causa. Se quiser punir, poderá punir com humanidade. Se quiser absolver, poderá absolver e terá feito justiça essencialmente humana (NETO; 1960, p. 100).

Retomando a vexata questio na parte em que se crítica os jurados, não vejo como sobressair a tese de que são inaptos a julgar. Ora, são integrantes da sociedade e, por vezes, sentem até mais os efeitos do delito em seu cotidiano que o próprio juiz togado que, de seu gabinete, encontra-se por vezes distante da realidade que atinge a sociedade.

Agir de forma puramente técnica, como se computador fosse, insensível às mazelas do dia a dia e alheio às cincas humanas, não é garantia alguma de justiça! Invocamos, novamente, Tourinho Filho, verbis:

Os jurados são leigos na ‘subsunção da conduta ao tipo penal’, são leigos na dosimetria de pena, mas sabem distinguir o que é certo e o que é errado, sabem dizer, num clima de empatia, se adotaria a mesma conduta do réu. Se o constituinte quisesse um julgamento técnico, por óbvio não teria instituído e mantido o Júri. Este compreende a sociedade em que vive. O Juiz togado, não. O togado compreende a lei, e dela não pode afastar-se. Embora sabendo que teria a mesma conduta do réu, ficaria acorrentado, preso às provas dos autos, ao texto da lei, podendo inclusive, se ousar agir de forma diversa, responder por prevaricação (TOURINHO FILHO, 2012, p. 773).

Todos nós sabemos que o Poder Judiciário nem sempre lida com questões que encontram respaldo na dogmática jurídica. E é justamente aí que o jurado, representante da sociedade, assinala qual é o senso de justiça que naquele caso emana do povo.

Direito e justiça, pontuava Eduardo Couture na obra “Os Mandamentos do Advogado”, nem sempre andam juntos, e em tais casos a segunda deve sobrepujar o primeiro. Eis o quarto mandamento do advogado:

Teu dever é lutar pelo direito; porém, quando encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça (COUTURE, 1979, p. 39).

Rui Barbosa também defendia ferrenhamente a manutenção do Tribunal do Júri:

Somos partidários do júri porque ele é a emanação da vontade do povo; porque as suas decisões, proferidas por consciências livres de preconceitos, atendem ao pensamento médio da sociedade […] Garantir o júri não pode ser garantir-lhe o nome. Há de se garantir-lhe a substância, a realidade, o poder (BARBOSA, apud LINS E SILVA, 2011, p. 291).

Certa feita, em um Júri realizado no interior do Paraná, o magistrado, durante o interrogatório em plenário, indignou-se com o acusado por este ter ido a um bailão (local do “crime”) onde todos sabiam que volta e meia havia brigas e discussões entre os frequentadores. Data venia, queria o julgador que o réu, um simples cortador de erva, que trabalhava hoje para comer amanhã, fosse se divertir no mais exclusivo clube daquela cidade?

Penso que os jurados, em sua maioria, percebem melhor as condições sociais das quais germina o fato criminoso, conseguem entender melhor os padrões sociais exigíveis da vítima e do acusado, e por isso são mais capacitados a julgar que os togados.

Trago à baila a posição da juíza aposentada Denise Frossard, deveras peculiar e ácida:

O que vejo na realidade é que o juiz togado morre de ciúme do conselho de sentença, formado pelos jurados. Porque o juiz estuda a vida inteira, adquire todas as ferramentas intelectuais e técnicas, se submete a um concurso público dificílimo, e na hora de julgar o crime, não pode bater o martelo (FROSSARD, citada por PAULO FILHO, 2015, p. 81).

Para não me estender em demasia, assinalo que, àqueles que insistem que a decisão do júri é falha por não ser fundamentada, também tenho que lhes falece razão. É que, ao responder aos quesitos, ainda que de forma monossilábica (sim/não), os jurados estão a decidir segundo suas próprias consciências, podendo se valer de tudo o que lhes foi apresentado para julgar da forma como melhor lhes aprouver, o que não significa dizer que o fazem sem motivos, apenas não precisam externá-los, opção assegurada pelo legislador constituinte.

Em arremate, defendo e defenderei sempre a Instituição do Júri, consciente das falhas que tem, das injustiças que pode cometer (das quais não estão imunes os togados) e dos melhoramentos de que precisa. Mas, como nosso Águia de Haia já brandia:

Sentido, senhores! Quando a Tribuna popular cair, é a parede mestra da Justiça que ruirá.


REFERÊNCIAS

BARBOSA; Rui. O Júri sob todos os Aspectos. São Paulo: Editora Nacional de Direito. 1950.

COUTURE; Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Porto Alegre: Fabris, 1795.

LINS E SILVA; Evandro. A Defesa tem a Palavra. 4ª Ed., Rio de Janeiro: Booklink, 2011.

NETO; Romeiro. Defesas Penais. Rio de Janeiro: José Konfino, 1960.

PAULO FILHO; Pedro. Grandes Advogados, Grandes Julgamentos (No Júri e Noutros Tribunais). 4ª Ed. São Paulo: JHMIZUNO, 2015.

TOURINHO FILHO; Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 15ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2012.


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Ezequiel Fernandes

Advogado criminalista

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