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Tribunal do Júri: um roteiro para as mulheres

Por Mariana Py Muniz Cappellari   

Hoje a minha coluna será diferente, pois pretendo através dela homenagear a todas as Advogadas e Defensoras Públicas plenaristas atuantes no Tribunal do Júri, guerreiras e aguerridas defensoras da liberdade e igualdade! A ideia surgiu com a leitura da coluna do meu querido amigo Jean de Menezes Severo, a quem guardo muita admiração, o qual se deitou sobre como se portar em plenário: o que fazer e o que não fazer no Tribunal do Júri.

Não tenho tamanha pretensão, mas quero também traçar um roteiro específico para as mulheres, o qual possa ajuda-las quando do ingresso na arena do palco que é o Tribunal do Júri. Digo isso por experiência própria. Antes de ingressar na carreira de Defensora Pública, exerci a advocacia e a função de assessoria jurídica, em áreas diversas do Direito Penal, portanto, nunca havia pisado em um plenário de júri, fui fazê-lo apenas quando da aprovação e do ingresso junto aos quadros da Defensoria Pública.

Durante os meus estudos para o concurso, passei a me dedicar mais as matérias relativas ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, das quais tinha menos conhecimento, até porque conforme relatei, a minha experiência profissional não se encontrava com essas áreas, muito pelo contrário. Na verdade, penso ser do contra. Há uma máxima no sentido de que namoramos o Direito Penal durante a faculdade, mas casamos com o Direito Civil. Pois é, a máxima se deu de forma invertida no meu caso e foi por isso que tendo a possibilidade como primeira Comarca a me classificar escolhi aquela que se encontrava especializada na área criminal, pois tinha a certeza de que se pudesse fazer um júri, o que considerava mais difícil, poderia fazer qualquer coisa dentro do arsenal jurídico.

E não me arrependo nem um pouco, pois evidentemente costumo dizer que não há nenhum lugar como o Tribunal do Júri para qualquer profissional do direito. Evidentemente é lá onde você irá explorar todas as suas habilidades: oratória, entonação, postura, gesticulação, elucubração, raciocínio rápido, argumentação, convencimento, entre outros. Por certo, todos deveriam apostar nessa experiência, em que pese há quem diga que o júri não é um lugar para aventureiros. E para aventureiras? É sobre essa perspectiva que eu quero trabalhar também.

Historicamente o júri é um palco masculino e não poderia deixar de ser diferente, já que o direito se encontra inserido e teria sido estabelecido no intuito de regrar as relações sociais. Não por isso menos, no passado, no qual me enquadro, não fazíamos a faculdade de direito, mas sim de ciências jurídicas e sociais, na medida em que não há como dissociar o direito da sociedade, das relações sociais e pessoais, bem como da vida, em última instância, o que se torna interessante, pois a sua competência justamente se delimita aos crimes dolosos contra a vida. É que no júri tanto a vida quanto a morte estão presentes, o mesmo conflito que carregamos dentro de nós, de acordo com Freud, o de Eros e de Tanatos.

Se o direito então se encontra umbilicalmente vinculado às relações sociais, não podemos esquecer que a sua estruturação se dá nos termos de uma sociedade capitalista patriarcal e, logo, a diferenciação de gênero encontra uma maior visibilidade em sede de Tribunal do Júri. De acordo com Andrade (2012), para além do dado biológico que define o sexo (cada nascimento requer um registro sexual), o gênero será concebido como o sexo socialmente construído, pois, nessa esteira, “é a construção social do gênero, e não a diferença biológica do sexo, o ponto de partida para a análise crítica da divisão social de trabalho entre mulheres e homens na sociedade moderna, vale dizer, da atribuição aos dois gêneros de papeis diferenciados (sobre ou subordinado) nas esferas da produção, da reprodução e da política e, também, através da separação entre público e privado.”

Talvez, então, esse seja o nosso primeiro desafio, o qual apontaria nesse roteiro. Pois, ainda na esteira de Andrade (2012), a esfera pública, configurada como a esfera de produção material, centralizando relações de propriedade e trabalhistas, tem seu protagonismo reservado ao “homem” enquanto sujeito produtivo, mas não a qualquer um, mas sim ao “homem” racional-ativo-forte-potente-guerreiro-viril-público-possuidor.

Não pense que seu adversário não fará uso disso, ainda que inconscientemente, o fará sim. Desde o olhar lançado ao aparte solicitado até a fala propriamente dita, o que subjaz é a mensagem de que ali não é um local para mulheres: os júris são demasiadamente longos, alguns, duram horas, dias, semanas, ingressam nas madrugadas. Você muitas vezes chegará a sua casa posteriormente ao seu marido, companheiro, namorado. O encontrará dormindo, assim como seus filhos. Ninguém imagina e até algumas mulheres mesmo, que você possa ser uma profunda conhecedora de armas, de medicina legal, de balística. Que possa saber e traduzir aos jurados o que se passa nos bares e botecos da vida! Locais e matérias ‘destinadas’ ao masculino apenas.

Então, superada essa primeira barreira, a qual será uma constante na sua vida profissional e não apenas no Tribunal do Júri, mas aqui talvez com maior visibilidade, elenco algumas dicas que penso serem de alguma valia. A primeira delas diz com a necessidade de se conhecer o processo de capa a capa, até porque se os jurados votam com a íntima convicção, votam, portanto, de capa a capa, também, e, consequentemente. Ainda, conhecendo de fato o processo e inteiramente, seu adversário não poderá contar com o elemento surpresa. Tribunal do Júri é arte da guerra também.

A defesa no Júri não se inicia no plenário, muito pelo contrário, se inicia antes mesmo da instauração do processo em si. Daí a dificuldade de receber os autos prontos para defesa exclusiva no plenário. É que cada elemento de informação, cada prova produzida, deve ser pensada visando à defesa posterior em plenário. No Júri, pequenos detalhes fazem grande diferença, já que tudo pode influir na formação da convicção dos jurados (desde a aparência e a pessoa do réu ou da ré, até a do defensor ou da defensora), pois nunca saberemos por que razão votou de determinada forma, eis que inexistente fundamentação, construindo-se o resultado de acordo com as respostas formuladas aos quesitos. Daí a necessidade de formulação de um roteiro com índice de peças e estruturação das teses defensivas que serão desenvolvidas em plenário.

Nesse ponto, penso que a linguagem é de fundamental importância. Os jurados, em regra, são leigos, desconhecem ou ignoram as teses jurídicas e quanto mais à linguagem jurídica, assim, torna-se indispensável ao explicar as provas do processo e as teses defensivas trazerem o contexto jurídico para a vida dessas pessoas. Relacionar o processo com exemplos retirados da literatura, dos jornais e até das novelas, torna compreensível ao outro o que tentamos obter, principalmente através e, posteriormente, do reforço das teses defensivas ao explicar os quesitos, pois embora simplificados com a Lei de 2008 que alterou o procedimento do júri, ainda são objeto de dúvidas por parte dos jurados, mormente por aquele que está a realizar o seu primeiro plenário, algo importante de se saber.

Aqui, ingressa também o trabalho que se deve realizar com a voz, desde a entonação. Ninguém gosta de gritos ao tempo todo em seus ouvidos, a voz mansa e os gritos imponentes necessitam de dosagem, pois as mulheres têm mais tendência aos agudos, quanto mais quando exaltadas, e você irá constantemente se exaltar em plenário, o que significa que você está em estado de júri, ou seja, na tensão inerente aquele momento, com o coração acelerado, doendo no peito, com o estômago embrulhado, com a garganta trancada, com o suor brotando no corpo e por debaixo do cabelo, tudo necessário para uma entrega de corpo e alma à defesa do acusado ou acusada.

E não pense que você não está sendo julgada também, desde a sua postura, vestimenta, cor de roupa escolhida, toga, gesticulação, você é constantemente julgada ao lado do acusado ou acusada, por isso, penso que para além da escolha dos jurados e do manejo das recusas imotivadas, o que bem desenvolveu Jean, das testemunhas de plenário e do interrogatório do réu ou da ré, aqui, sendo fundamental a entrevista reservada anteriormente e a técnica de questionamento ou até o uso do silêncio, por exemplo, no caso do réu e da ré, apenas para os questionamentos do Promotor de Justiça, a utilização do tempo (não extrapolar e cansar os jurados) e os apartes (saber quando usar e sentir-se segura em conceder), a saudação é o ponto fulcral desse roteiro. Por quê?

Thales Nilo Trein (1996) dá conta do Cérebro Triúnico de MacLean, segundo ele, o cérebro humano possui três sistemas fisiologicamente independentes, os quais no que diz com o plano de recepção das mensagens pelo receptor são de fundamental importância. Isso porque o chamado Cérebro Reptiliano, o primeiro sistema, é a parte mais interna do sistema nervoso, região onde ocorrem os padrões automáticos, os hábitos, as rotinas, principalmente aquelas voltadas à sobrevivência. Toda vez que estamos em situações de grave perigo o nosso cérebro reptiliano entra em ação automaticamente e de forma tão intensa que chega a inibir o funcionamento dos centros nervosos a ele superiores. Mas o que é mais interessante é que quando se trata de comunicação entre pessoas, diz o autor que o aludido sistema primário está sempre ligado, atento, pronto para desencadear uma reação. Por isso, quando alguém tenta se comunicar conosco, o nosso cérebro reptiliano faz a seguinte pergunta: “confio ou não confio nessa pessoa?”, e se a resposta for positiva, o nosso cérebro primitivo deixará que a informação seja processada, mas, se negativa a resposta, a comunicação para por ali, pois a pessoa não mais lhe ouvirá.

O segundo sistema é o Cérebro Límbico que representaria exatamente o próprio local onde as nossas emoções são processadas, sendo sua marca a busca do prazer ou a fuga da dor, por isso, no que diz com a comunicação, ele irá perguntar: “Eu gosto ou não gosto do meu interlocutor(a)?” E pasme, ele tanto mais filtrará informações quanto menos gostar do interlocutor, e vice-versa. Por isso, aqui, o modo como falamos, a nossa técnica, é fundamental. Por fim, temos o Neocórtex que passará rigorosamente a atuar apenas quando respondidas positivamente as duas perguntas anteriores.

É evidente, assim, que a saudação será a sua apresentação a todos os participantes e integrantes do Tribunal do Júri, por isso a necessidade de se remontar a todos, indistintamente, desde o Juiz Togado, Promotor de Justiça, Secretários, Oficiais de Justiça, Servidores, Policiais Militares, Agentes Penitenciários, Plateia, Familiares, sejam do acusado ou acusada, quanto aos da vítima, mas, principalmente, aos Jurados, pois será nesse momento em que as perguntas anteriores serão inicialmente formuladas por eles e assim a sua fala poderá ser ouvida e compreendida ou não. Além disso, é nesse momento que temos a possibilidade de explicar aos Jurados qual é o seu papel no Tribunal do Júri, a que vieram e o que fazem ali. Também, é nesse contexto que temos a chance de desmistificar o nosso papel enquanto defesa, demonstrando a indispensabilidade da mesma e a sua real importância para a democracia. Acredite, é a partir da saudação que o seu corpo irá serenar um pouco, apenas o necessário para a desenvoltura de todas as suas potencialidades em plenário.

Teria muito mais a dizer, mas já me estendi por demais. Espero que as minhas palavras sejam úteis e consigam ajudar, fazendo diferença nessa atuação. Tenho certeza que o plenário do júri é um palco muito mais feminino do que se possa imaginar, não foi à toa que iniciei a coluna aludindo às defensoras da liberdade e da igualdade; sentimos na pele todos os dias a necessidade premente de ao se labutar no interior do sistema jurídico, estruturado no androcentrismo e no patriarcalismo, defender, por primeiro, a nossa liberdade e a nossa igualdade, esta última no dizer e na ótica de Boaventura de Sousa Santos, citado por Andrade, “Temos direito a reivindicar a igualdade quando a desigualdade nos inferioriza; temos direito a reivindicar a diferença quando a igualdade nos descaracteriza”, talvez e, por isso, tenhamos muito mais facilidade de se colocar na posição de réu e de ré e, assim, firmar uma defesa muito mais segura, contundente e aguerrida.

Acho que estou saudosa de um plenário e mato a minha saudade, por ora, na defesa perpetrada por cada Advogada e Defensora Pública todos os dias nos mais distantes plenários do júri.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mãos da criminologia, O controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

TREIN, Thales Nilo. Júri. As Linguagens praticadas no Plenário. A oratória, os gestos e uma nova comunicação. Rio de Janeiro: AIDE, 1996.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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