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Tribunal do povo: Volksgerichtshof

Tribunal do povo: Volksgerichtshof

O ônus imposto aos derrotados da primeira guerra mundial, em particular aos alemães, é uma das explicações para o fortalecimento e chegada ao poder do regime nazista.

O tratado de Versalhes, além de impor aos Alemães altos encargos financeiros, tomou da República de Weimar territórios importantes, impondo-lhes humilhações diplomáticas que repercutiram diretamente no espírito do povo alemão.

O regime nazista deve ser analisado sob este contexto. A ruptura do tecido social em consonância com as graves crises econômicas desaguaram numa epifania, que fez um povo depositar suas esperanças em um líder messiânico, que resgataria a nação da crise e das humilhações.

O regime tinha como características ideológicas fundamentais o forte nacionalismo e uma crença irracional na supremacia biológica da raça ariana, os quais seriam os alemães seu mais bem acabado exemplo.

Tais premissas foram operacionalizadas de diversas formas, seja através da propaganda altamente sofisticada para alavancar o sentimento patriota do povo alemão, até a perseguição e extermínio em campos de concentração das minorias étnicas e dos opositores ao regime.

Tamanhas crueldades foram acompanhadas de perto pelos juristas alemães, que não apenas observaram o desenvolver do regime nazista, como também o apoiaram e o fundamentaram juridicamente.

Um dos exemplos mais bem acabados de tal expediente foi o chamado Volksgerichtshof, o tribunal do povo alemão, criado em 1933, na esteira da ascensão do terceiro reich, e que tinha como objetivo julgar os crimes de traição ao regime, além de atentados ao Führer e demais elevadas autoridades do regime nazista.

O Volksgerichtshof operou até 1945, e apesar de contar com três tipos de sanção, a multa, a condenação a trabalhos forçados e a pena de morte, se notabilizou por utilizar de forma corriqueira esta última forma de sentença, com mais de treze mil condenados a morte.

Como funcionava o tribunal do povo e quais suas sustentações teóricas?

O Volksgerichtshof tinha competência para julgar os civis alemães nos crimes relacionados a traição. Tal tipo penal não era taxativo, sendo que traição, para os nazistas, era qualquer conduta que se opusesse ao regime.

Aqui temos um clássico exemplo de tipo penal de perigo abstrato. O resultado finalístico deixa de ser relevante para a condenação do agente, e criminaliza-se o autor, suas conexões pessoais, seus hábitos, idéias, intenções e todo o mais que a criatividade do acusador conseguir imaginar como sendo perigoso ao regime.

Percebe-se, portanto, que o conceito alargado do que poderia configurar o crime de traição, fez com que o tribunal do povo estendesse sua competência para quase qualquer atividade da vida das pessoas, desde comentários públicos despretensiosos, críticos ao regime, até sofisticados planos para assassinar o Führer, como a famosa operação Valquíria.

O direito penal do fato abre espaço para o direito penal do autor, sendo o princípio da legalidade ofuscado pela culpabilidade do agente. Tal culpabilidade visa, principalmente, vincular as supostas intenções do agente ao, também suposto, evento delitivo. Essa margem ampla para interpretação incide, sobretudo, sobre pessoas identificadas como potencialmente criminosas, em quem o regime progeta uma suposta periculosidade subjetiva.

O Volksgerichtshof era organizado em três câmaras, que possuíam um presidente, responsável pelos julgamentos.

O mais notável dos presidentes do tribunal do povo alemão foi Roland Freisler, morto no ano de 1945, durante um julgamento, interrompido por um bombardeio americano a cidade de Berlim, que atingiu em cheio a corte durante os trabalhos.

Freisler sintetizou o sistema penal do Volksgerichtshof, que era parcialmente inquisitorial.  O juiz, além de julgar, era responsável por inquirir o réu nas etapas que precediam a decretação da sentença.

Algumas das sessões do tribunal foram filmadas, para serem, eventualmente, utilizadas pelo ministro da propaganda Goebbels. Não raro é possível observar a sistemática que o juiz Freisler adotava. Com postura agressiva e nada imparcial, inquiria e interrompia os acusados, gesticulando efusivamente e com notório propósito de desestabilizá-los. Os julgamentos, em sua maioria, eram apenas encenações, cujo veredicto todos podiam prever antecipadamente.

E quais eram as premissas básicas que guiavam o tribunal do povo em seus veredictos?

O ponto de partida é que o Volksgerichtshof tinha como missão substancializar o espírito do nacional socialismo. Como estado totalitário, nacionalitas e eugênico, tal espírito só poderia ser sintetizado na supressão de opositores, limpeza étnica e no fortalecimento do poder central.

Além disso, o guia mestre do tribunal do povo alemão era o Führerprinzip, que estatuía que as decisões deveriam ser pautadas de acordo com a vontade do Führer, ou seja, diante do caso concreto posto, deveria se decidir de acordo com o que o Führer decidiria para aquele mesmo caso.

Quem bem sintetizou e fundamentou tal princípio foi o jurista Carl Schmitt, para quem era função do presidente do reich dirimir os conflitos interpretativos, bem como, nos momentos de perigo, criar o direito, de forma a garantir a unidade e a força do povo alemão.

Aqui é possível notar o forte caráter jusnaturalista que o direito alemão nazista possuía.

A legalidade não era premissa básica do sistema penal alemão. Seus ideólogos, e o Führer, apegavam-se a conceitos e critérios altamente flexíveis, que revelavam uma “justiça” acessível apenas aos arianos e jamais aos seus inimigos. As premissas básicas do direito penal, como o princípio da legalidade, a taxatividade da lei penal, a presunção de inocência e in dubio pro reo, simplesmente são enterrados como forma de garantir a estabilidade do regime e o fortalecimento do partido nazista.

Para o estudioso de história e do direito o Volksgerichtshof apresenta-se como uma mera curiosidade perdida nos tempos passados. Para o observador atento da política atual, é um forte lembrete dos limites da crueldade e arbitrariedade que o poder punitivo pode exercer.


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