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O tribunal é dos homens

É uma discussão amplamente difundida a que diz respeito ao machismo estrutural que permeia toda a sociedade em que vivemos, atualmente e desde seus primórdios.

Muito se fala sobre a sociedade brasileira ser profundamente misógina, o que se confirma, por exemplo, entre tantas outras ocasiões tão simbólicas quanto, com a postura dos parlamentares que aprovaram, na última semana, a proposta de emenda constitucional que dá o primeiro passo para a criminalização do aborto nas hipóteses que hoje são resguardadas por força do Código Penal.

Ser mulher nesse contexto é sentir desde o nascimento o peso do controle alheio sobre o próprio corpo, os sonhos, as escolhas, é ser ensinada desde cedo a “agir como mocinha” para não provocar ou incomodar os homens.

Quando se ingressa em áreas de conhecimento tradicionais, como é o caso do Direito, a situação parece se intensificar. A partir do momento em que se ingressa na faculdade, fica evidente que a absoluta maioria das opiniões consideradas juridicamente válidas pertence a homens.

É uma maioria de homens professores, de homens autores, de homens palestrantes, de homens como figuras de autoridade. Na academia, não são raros os casos de professores, ou mesmo colegas, que banalizam o tema do estupro, que assediam mulheres, dentro da sala de aula. Todos esses casos, que são tragicamente comuns, parecem servir a demonstrar que o Direito não é lugar de mulher.

O contexto do direito penal é ainda mais hostil às mulheres, que em geral são consideradas delicadas demais, sentimentais demais, histéricas demais, descontroladas demais para atuarem na área. Direito penal requer sangue frio, e sangue frio não é coisa de mulher.

Mas se existe no mundo jurídico um ambiente que é, em absoluto, um templo da masculinidade, esse ambiente é o Tribunal do Júri. Todo o imaginário que cerca o chamado Tribunal Popular é masculino ou masculinizado, desde os policiais militares que sempre estão presentes em plenário até a imagem do réu “padrão” dos crimes dolosos contra a vida. Toda a atuação dos personagens homens da dinâmica do Tribunal é voltada à exclusão de tudo que é feminino.

Como em outros ambientes, a pressão que se coloca sobre as mulheres que ousam pisar esse solo androcêntrico é infinitamente maior do que a que recai sobre os ocupantes “naturais” do espaço.

A atuação de uma mulher, seja na qualidade de juíza, promotora ou advogada, precisa ser absolutamente impecável para merecer ocupar o mesmo patamar de uma atuação medíocre de um homem. No Tribunal do Júri, porém, essa questão toma proporções únicas.

Presenciei, por mais de uma vez, durante sessões plenárias de julgamento no Tribunal do Júri de Curitiba, insinuações sobre a vida privada de mulheres que ali atuavam servirem de argumento relativo à causa a ser julgada. Vi um advogado renomado dizer a uma promotora de justiça que voltasse para a cozinha.

Assisti a outro causídico bradar como argumento que a vítima do processo em questão “comeu a mulher do réu”, e desqualificar referida mulher repetidamente, no plenário do Tribunal, exclusivamente por meio de suposições sobre sua vida sexual.

Mesmo aquelas mulheres que, por uma lógica utilitarista, deveriam necessariamente ser respeitadas, aquelas que compõem o Conselho de Sentença, não parecem merecer consideração dos grandes machos-alfa que assumem a posição de tribunos do júri. As referências ao Conselho são sempre, invariavelmente, masculinas.

As palavras são dirigidas aos jurados, ao cidadão jurado, aos senhores, ao cidadão comum, ao membro da sociedade civil. É praticamente impossível ouvir uma referência às senhoras juradas, às cidadãs juradas, às integrantes da sociedade. Mesmo quando têm o poder de julgar a causa, as mulheres que adentram o Tribunal do Júri são ignoradas, invisibilizadas, por vezes, intimidadas.

O ambiente não é, como se poderia desejar, menos tóxico nos bastidores do Tribunal, longe do ambiente conflituoso e combativo do plenário. Ao contrário, a misoginia no máximo se camufla mais efetivamente.

Trabalhando nesses bastidores, perdi as contas de quantas vezes ouvi que o motivo de problemas das mais diversas ordens – desde o relacionamento de uma equipe até a indignação profunda de uma pessoa por uma ofensa de caráter misógino proferida em plenário – era que “mulher é assim mesmo”, ou, simplesmente, sem maiores elaborações, que uma das pessoas envolvidas era mulher.

Nessa atmosfera amplamente opressiva, não surpreende que algumas das mulheres que atuam no Tribunal do Júri acabem por se masculinizar.

Buscando a aceitação, ou pelo menos a tolerância dos homens que as cercam, essas mulheres passam a, de certa forma, imitá-los, muitas vezes distanciando-se de sua identidade em busca de uma aproximação do ideal de “tribuno do júri” – o qual, inegavelmente, diz respeito a um homem, de forma que efetivamente jamais será atingido.

Tampouco é raro que, em razão dessa busca, essas mulheres cometam erros graves – que depois, em geral, também são atribuídos à sua condição de mulher, ou servem para justificar o discurso de que mulher não serve para ser juíza, ou promotora de justiça, ou advogada criminal.

É evidente, então, que assumir uma identidade mais próxima à dos homens que tradicionalmente ocupam o Tribunal do Júri é para as mulheres que buscam fazê-lo uma estratégia fadada ao fracasso.

O Tribunal é dos homens. É um tribunal de homens, por homens, para homens, e jamais nos encaixaremos em seus estereótipos, em seus roteiros e em seus modelos.

Cabe então às mulheres que ousam ocupá-lo lutar, pela qualidade do próprio trabalho, para desconstruir cada estereótipo, cada roteiro e cada modelo constituído há décadas – senão séculos –, até que ele se transforme de Tribunal dos Homens no Tribunal do Povo que ele deveria ser, com a devida lembrança de que pelo menos metade desse povo é também de mulheres.


Assina esse texto: Susan Squair

Iuris Trivium

Grupo de simulação, pesquisa e extensão em Tribunal do Júri (UFPR)

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