Um júri, um rap e uma absolvição em plenário

Por Jean de Menezes Severo

Inicialmente, gostaria de agradecer a todos vocês pelas visualizações do meu último artigo. Fiquei muito feliz e emocionado pelo carinho de todos os leitores. Pois bem, chega de delongas e vamos lá.

Nos meus artigos, gosto de falar de processos nos quais atuei ou que venho trabalhando. Acho importante dividir conhecimento e experiências positivas e negativas que vivenciei, assim, as chances de vocês erraram é menor e meu objetivo como colunista e professor é ver os meus queridos estudantes de Direito bem preparados para enfrentar esta dura e difícil caminhada que é a advocacia criminal, mas que possui frutos doces quando seguimos firmes e, principalmente, sabemos o que estamos fazendo na condução de uma defesa em um processo-crime.

O rap entrou na minha vida no inicio dos anos 90, quando escutei pela primeira vez Domingo no parque dos Racionais do MC’s. Aquela batida, e especialmente, a letra mexeram comigo. Via minha realidade sendo rimada naquela música e nunca mais consegui me afastar do rap, que uma vez me ajudou a absolver uma família inteira em um júri que fiz no Rio Grande do Sul.

Posso dizer que minha vida e o Tribunal do Júri se confundem. Tudo o que eu tenho devo ao Plenário que me trouxe até aqui próximo a vocês leitores. Sempre digo quando faço um júri: “O tribunal do júri é a minha casa e nela só entra quem eu quero!” Portanto, meu amigo promotor, tenha certeza que sua vida não será fácil quando eu estiver na defesa de um acusado, afinal de contas, o que você está disposto a fazer para condenar alguém? Eu estou pronto a deixar a minha vida em Plenário quando estou na defesa e não são raras as vezes que deixo a arena em cadeiras de rodas, tamanho o castigo físico que eu próprio me submeto quando estou atuando. Quem já assistiu a um júri meu sabe do que eu estou falando.

Sempre digo aos estudantes e jovens advogados que esqueçam o cabelo penteado quando estiverem fazendo um júri, pois o cabelo vai descabelar; também tenham certeza que a beca que usam vai amarrotar, pois é assim o júri, um palco de emoções onde você, advogado, está sendo analisado por todos e não se iludam: somente o réu que você defende e sua família é que estão assistindo, rezando e torcendo para que você faça um bom trabalho, pois o resto (plateia, juiz e promotor e demais expectadores), tenham certeza, estão torcendo para que você se dane em plenário. Assim é o jogo, portanto, vão se acostumando desde já.

O maior conselho que posso dar a vocês estudantes é que assistam muitos júris antes de fazer o seu primeiro. Assistam a júris com os grandes advogados, porque assim vocês aprendem como fazer um; assistam a júris com os advogados razoáveis, categoria a qual me incluo, e assistam a júris com os advogados ruins, pois assim vocês aprendem como não fazer.

Quando acadêmico, realizei mais de 200 (duzentos) júris auxiliando um grande advogado criminalista e hoje já realizei mais de 70 (setenta) júris, com uma média de absolvição altíssima, mas não gosto de falar muito em vitórias e derrotas no plenário; o Tribunal do Júri é um local triste onde duas famílias estão sofrendo. Uma perdeu alguém quando do homicídio e outra vai perder alguém pela condenação. Sempre digo que, no Tribunal do Júri, não existe espaço para sorrisos; o clima é tenso e sombrio e você advogado será levado ao seu limite, tanto físico quanto mental.

Feitas essas considerações iniciais, reporto-me para o ano de 2013, quando fiz um júri na grande Porto Alegre. Havia 04 (quatro) réus, todos da mesma família, acusados de homicídio duplamente qualificado, tráfico e associação ao tráfico de entorpecentes. Meus amigos, aquela missão não seria fácil naquele dia, pois se você for um promotor razoável, certamente iria gastar boa parte de sua fala focando-se nos crimes de tráfico de drogas e associação.

Você, meu estudante dileto, deve saber que o Tribunal do Júri também aprecia quaisquer outros delitos conexos aos crimes de sua competência, assim os juízes “leigos”, que de leigos não têm nada (um dia escrevo uma coluna somente sobre os jurados e vocês entenderão melhor esta minha afirmação), também iriam dar um veredicto sobre os delitos de tráfico e associação, razão pela qual o Parquet bateria forte no tráfico. Gente, o jurado é pai, mãe, filho, tio, avó, avó etc e nenhum deles quer ver aquele réu que está sendo julgado vendendo “bagulho” para seus entes queridos. Resultado disso: condenação pesada no tráfico, na associação e no homicídio. O prato principal do cardápio acaba virando a sobremesa e vice-versa.

Aquele processo possuía mais de 2.000 (duas mil) páginas. Réus presos cautelarmente há mais de um ano e meio, o que sempre me faz lembrar o art. 5º, LXXVIII da CF/88, que garante ao acusado a duração razoável do processo. Será razoável o réu ficar preso um ano e meio de forma cautelar esperando julgamento? Sem sentença condenatória? Não sei. Faça você o seu próprio julgamento. Isso é assunto para outra coluna.

Voltando para o nosso caso: não possuía uma grama sequer de maconha ou de cocaína apreendida; não existia revolver calibre 32 apreendido; a vítima havia sido assassinada por dois indivíduos em uma motocicleta, ambos de capacete, portanto, era impossível apurar a autoria, o que levou os réus a plenário foi um inquérito mal feito, conduzido por um delegado que mais se preocupava em apontar possíveis suspeitos para assim se livrar de mais um expediente e também dar entrevistas para o jornal local.

Então, o que havia nos autos? Depoimentos desconexos e um volume inteiro de degravações de interceptações telefônicas e mensagens de celular que não incriminavam ninguém. É importante eu falar a vocês que assumi este processo apenas para realizar o plenário, como quase sempre acontece. Talvez um dia eu consiga fazer um júri assumindo o caso desde a delegacia, pois assim poderia trabalhar com mais tranquilidade.

Como já falei anteriormente, estava defendendo uma família (pai, filho, filha e genro). A filha, com apenas 19 anos de idade, que vou chamar de L, tinha uma “habilidade”, qual seja: fazer letras de funk. E não é que a criatura me faz um “bonde” e a letra desse bonde vai parar nas degravações dos autos? E pior: o promotor, que não é bobo nem nada, em Plenário faz toda sua réplica em cima desse “maldito” bonde.

A letra é impublicável. Fala de armas, drogas, ostentação, descer a bundinha até o chão e essa coisas todas que estamos acostumados a ouvir diariamente em nossas rádios. Porém, meus amados leitores, um bonde, mesmo os muito ruinzinhos, quando lido por um promotor de justiça, toma proporções gigantescas no plenário do júri. É condenação pura! Lembro que no final o promotor sorriu e disse:

“Esses marginais não respeitam nada, zombam, fazem hinos em favor das drogas, do sexo, da morte. Eles não temem nada e relatam suas atividades delituosas em letras de música, se isso der pra chamar de música, afinal de contas, eles não respeitam nada!”

Quando ele terminou a sua fala, até eu concordava com a acusação e queria condenar os quatro acusados, de tão bom que ficou o trabalho do promotor em plenário. E na réplica, no “frigir dos ovos”, achei que, por um instante, tudo estaria perdido Mas, socorri-me de um dos mandamentos do advogado, qual seja: PENSA!

E pensei nas valiosas lições de uma das maiores lendas de Plenário que este país já conheceu: o mito Evandro Lins e Silva. O mestre já dizia que, para se sair vitorioso em um júri, o advogado não pode saber apenas as letras jurídicas; precisa ter cultura, saber um pouco de tudo. E, com meu pouco saber, pensei e encarei a réplica com toda fé e coragem que Deus me deu.

Renovei a saudação a todos, em especial ao promotor de justiça e de cara lhe falei: “Como cantor de funk, Vossa Excelência é um excelente promotor de justiça”. Ele me deu um sorrisinho amarelo, mas no fundo sabia: Aí vem bomba e este gordinho é doido!

Dirigi-me aos jurados e pedi-lhes sua máxima atenção. Pedi-lhes licença para declamar um poema, já que o promotor havia cantado um funk, no entanto, avisei que só iria declinar o nome do poeta ao final daquela declamação e iniciei meu trabalho, protegido por São Ivo, protetor dos advogados e lhes disse:

“Um homem na estrada recomeça a sua vida/ Sua finalidade: a sua liberdade/ Que foi perdida, subtraída/ E quer provar a si mesmo que realmente mudou/ Que se recuperou e quer viver em paz/ Não olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais!/ Pois sua infância não foi um mar de rosas, não/ Na FEBEM, lembranças dolorosas, então/ Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim/ Muitos morreram sim, sonhando alto assim/ Me digam quem é feliz, quem não se desespera/ Vendo nascer seu filho no berço da miséria./ Um lugar onde só tinham como atração/ O bar e o candomblé pra se tomar a benção/ Esse é o palco da historia que por mim será contada/ Um homem na estrada”   

Quando terminei a declamação, podia se ouvir o barulho das asinhas das moscas batendo ao ar. O silêncio era profundo. Declamei com emoção, com força e sinceridade. Muitos no Plenário choraram naquele momento; vi os olhos dos jurados marejados de lágrimas e tomados pela emoção que tomou conta do ambiente. ISSO É O JÚRI e ao final lhes indaguei:

“Vossas Excelências se emocionaram ao ouvir este poema não é? Pois bem, Excelências, o que eu acabei de declamar não é um poema é sim uma letra de rap dos Racionais MC’s lá do Capão Redondo, comunidade pobre de São Paulo e Vossas Excelências emocionaram-se em escutar um rap, portanto não condenem esta família por gostar de funk!”

Resultado: réus absolvidos. Assim é o júri. Uns amam, outros odeiam. Eu sou um apaixonado pelo júri e respeito aqueles que não gostam desta instituição, mas uma coisa é inegável: não existe local onde o advogado é mais advogado do que no Plenário do Júri.

JeanSevero