Uma breve história dos livros encadernados com pele humana
Por Vitor da Matta Vivolo
Cerca de dois anos atrás, a biblioteca de Harvard entrou em rebuliço devido a um curioso achado em seu acervo: um livro cujo couro utilizado para encadernação era de origem humana. Aparentemente mórbido aos nossos costumes modernos, podemos perceber, no entanto, que o hábito não fora tão incomum assim num passado ainda praticamente recente.
Conforme pude explorar em meu artigo inaugural ao Canal Ciências Criminais, sobre a utilização de cadáveres no século XIX (veja aqui), a controvérsia relacionada aos chamados “restos mortais” humanos perpassa nossa própria gênese civilizatória e medicinal. Aos condenados à morte, nos anos de 1800s, a doação involuntária de seus corpos fazia parte da própria sentença: uma espécie de humilhação post mortem , envolvida em ares de espetáculo, e cuja superação teve de ser arduamente debatida no campo do imaginário popular. Ninguém desejava ter seu corpo dissecado, visto que tal ato o tornaria, automaticamente, comparável a um criminoso homicida.
À época, recortes de pele cadavérica desapareciam após as dissecações públicas, ressurgindo, meses depois, como belas encadernações em couro de livros medicinais, romances e até mesmo caderninhos de bolso. Foi o caso de William Burke, assassino condenado por realizar trâmites ilegais de corpos recém-enterrados às faculdades de medicina inglesas. Atualmente, tais obras são mantidas como preciosas relíquias por bibliotecas e museus estrangeiros, gerando controvérsia em relação à sua natureza eticamente discutível, apesar de seu valor inegavelmente histórico. Um fluxo recente de devoluções de patrimônios estrangeiros às suas origens também complica suas condições como objetos de acervo: crânios e miniaturas de cabeças dissecadas de tribos africanas, mantidas em museus nas terras de seus antigos colonizadores, têm sido enviados novamente às suas terras natais. O pipocar de livros encadernados com peles advindas de cobaias africanas permanece como temática polêmica nesse campo.
A encadernação com pele humana – ou “bibliopegia antropodérmica” – data, segundo uma bíblia francesa encontrada por Lawrence S. Thompson (diretor de bibliotecas da Universidade de Kentucky), cerca do século XIII. Daí em diante, a técnica fora aprimorada por volta do século XVII e tornou-se “tendência” no início da Era Vitoriana. Seus objetivos oscilavam entre a homenagem póstuma, o erotismo e a eterna lembrança de um julgamento criminal importante.
O website Crime Feed (veja aqui) traçou cerca de sete ocasiões em que a pele de executados pela justiça fora utilizada como material de encadernação. Dentre elas, o costume que emerge é o de envolver o relato criminal ou alguma obra escrita pelo condenado em seu próprio couro. Até mesmo o padre jesuíta Henry Garnet, que fora enforcado não por participar dos planos contra a coroa na Conspiração da Pólvora, mas, essencialmente, por estar ciente deles e se manter calado em busca de uma abordagem não violenta, não pôde escapar de tal destino. Um livro publicado sobre sua vida, logo após a execução, possuiu ao menos uma edição envolta por sua pele.
Livros como De Humani Corporis Fabrica (1543, de Andreas Vesalius), considerado um dos primeiros tratados anatômicos completos da história, eram constantemente homenageados através da bibliopegia antropodérmica. Há também, ainda segundo Lawrence Thompson, casos de obras do famigerado Marquês de Sade encadernadas com a pele de donzelas… Algumas, inclusive, deixando perceptíveis o contorno de mamilos em suas capas e lombadas. Por fim, alguns casos de homenagem voluntária são registrados por autores que, após sua morte, desejavam que seus livros fossem adornados – literalmente – por eles mesmos.
No intuito de atender os anseios dos consumidores desse tipo de “arte” na época, falsificações também eram produzidas. Atualmente, a Universidade de Harvard diz não saber afirmar a quantidade dessas obras em suas estantes, visto que ao menos uma delas fora testada em laboratório e constatou-se que, apesar das inscrições “encadernado em pele humana” à contracapa, couro ovino fora utilizado.
Aos que acharem estranha esta homenagem, a National Gallery of Australia recebeu, em 2009, uma oferta de doação de Geoff Ostling, cujo corpo é quase totalmente coberto por tatuagens. Sua pele, após sua morte, ficará exposta como obra de arte.
O imaginário católico também faz referências à pele (considerada o maior órgão do corpo humano), através de São Bartolomeu, que, em uma das versões de sua história, fora esfolado vivo. Sua pintura na Capela Cistina o retrata segurando a própria pele em uma mão e uma alfange na outra.
E você? Já pensou o que será de sua pele após morrer? Talvez alguns amigos até gostem de poder carregá-lo sempre junto, envolvendo alguma edição de bolso de seus livros favoritos.
REFERÊNCIAS
Tanned Human Skin, por Lawrence S. Thompson. Disponível aqui.
The Skinny on Harvard’s Rare Book Collection, por Samuel Jacobs. Disponível aqui.
Books of Human Flesh: The History behind Anthropodermic Bibliopegy, por Lindsey Fitzharris. Disponível aqui.
The macabre world of books bound in human skin, por BBC News. Disponível aqui.