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Uma cegueira jurisdicional


Por Ivan Jezler Júnior


A lei 12.694 de 2012 veio regrar a figura do juiz sem rosto, um colegiado de magistrados em primeiro grau, com a competência para apreciar medidas cautelares, contracautelas e benefícios penais cujo destinatário seja integrante de organização criminosa, ao passo que traz uma definição para tal instituto, até então inexistente no ordenamento jurídico.

Com o escopo de assegurar a integridade física e psíquica dos julgadores no contexto da criminalidade global e especializada, também prescreveu a necessidade de proteger o preceito do juiz natural, mediante a constituição da Turma por sorteio de dois dos seus membros, restando completa a composição com o juiz do feito. Em tempos que a presunção de inocência é relativizada e transformada pelo STF em mero tigre sem dentes e, na iminência de efetivação dos pacotes legislativos utilitaristas, o preceito da imparcialidade se torna o núcleo fundante de um sistema ou estilo processual que se diga democrático.

Sob essa perspectiva, importante relatar a situação jurídico-processual de “SILVA”, destinatário de decisões condenatórias que, somadas, alcançam quase 37 anos de reclusão, por crimes sem hediondez. Dessas condenações, apenas a sentença que impôs uma pena de treze anos de reclusão em regime fechado fora atingida pelo fechamento integral das vias recursais, podendo, em tese, ser executada.

Nessa execução definitiva, SILVA cumpriu 8 (oito) anos, e foi atingido pelos decretos presidenciais de 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015, fazendo jus a cumulativas comutações de penas (podem cumular), diante o preenchimento dos demais requisitos, como primariedade, cumprimento de 1/4 da reprimenda até dezembro dos respectivos anos e inexistência de falta grave nos doze meses anteriores (decreto 8615 de 2015). O Ministério Público opinou favoravelmente à extinção do restante da pena.

Os Tribunais Superiores pacificaram uma jurisprudência que impede ao juiz criminal criar novos requisitos para tais benefícios, como necessidade de exame criminológico ou periculosidade do agente, sendo a sentença que declara o indulto ou comutação, meramente DECLARATÓRIA (STJ, HC 327396 e STF, 114664, AP470, fase executória).

O Juiz da Vara de Execuções Criminais determinou a instauração de um colegiado para apreciar o pedido de comutação da pena, diante “notícia” de que o penitente seria integrante-chefe de associação delituosa, mesmo que a recepção condenatória seja relativa a um roubo simples, sem concurso de pessoas, quiçá organização criminosa. As demais sentenças condenatórias – não transitas em julgado – são por delitos comuns e sem imputação quanto ao art. 1º da lei 12850 de 2013 ou 12694 de 2012.

A despeito disso, a execução da sanção mencionada se instaurou por fato praticado em 2003, antes da vigência das mencionadas leis, quando não existia previsão de colegiado no juízo de piso e sequer definição de organização criminosa. Ignora-se a premissa, de que juiz competente é quem possui parcela de jurisdição previamente definida na norma, ante factum, além da impossibilidade de extratividade da lei material mais prejudicial, na modalidade retroagir para prejudicar.

O Tribunal de Exceção foi inaugurado, senso sorteada a juíza que já presidira um processo de conhecimento (causa de impedimento?), em uma das condenações de SILVA, sem coisa julgada, onde a mesma impôs uma sanção de cinco anos em regime inicial semiaberto, com o direito de recorrer em liberdade até o trânsito em julgado da condenação, que ainda se encontra em sede de recurso especial.

Sendo “SILVA” um inimigo, e não um réu médio, a juíza onipresente ‘’peticiona’’ para desarquivar o recurso de apelação e executar provisoriamente tal pena, com abrigo no entendimento do STF (HC 126.292), de forma a impedir que, eventual comutação da execução penal propiciasse sua soltura, retroagindo um entendimento jurisprudencial mais gravoso, e violador da suposição de inocência. Na mesma senda, o colegiado, com a mesma magistrada, indefere o pedido de comutação da pena, determinando que SILVA permaneça custodiado em estabelecimento penal fechado, mesmo já tendo progredido para o semiaberto, mantendo-o juridicamente no regime intermediário, mas encarcerado, no mais gravoso, onde já se encontra ilegalmente a alguns meses.

Se, como ressaltou CALAMANDREI (2002), seguido por DA ROSA (2013), o processo (executivo) penal é uma guerra, um jogo, com regras a serem respeitadas, só há reação mediante o exercício de uma defesa técnica que pensa e efetiva, pois contraditório, ampla defesa e as demais garantias procedimentais também se aplicam ao processo de execução. Precisamos derrubar um monumento, o ativismo jurisdicional.

Após atuar como um cão a farejar nulidades, o patrono de SILVA constata que a execução provisória está extinta, pois a diligente magistrada, ao tempo da sentença, além de intimar um réu preso, no mesmo território processante, por edital, não percebeu que a condenação, prematuramente executada, não foi publicada, sendo divulgada no diário uma decisão diversa, inexistindo interrupção entre o recebimento da declinatória e o início do cumprimento da pena, em 2002 e 2016, respectivamente.

Em arremate, talvez a juíza possa relativizar o tempo objetivo, o calendário posto e entender que não houve perda do direito de punir pelo decurso do tempo, afastando a prescrição da pretensão punitiva, nesta que é uma simples operação aritmética. Assim, após subtrair diversos direitos fundamentais, afastaria a garantia da execução criminal em um prazo razoável. O estado furtaria o tempo do reeducando, talvez o único direito ainda existente.

Durante sua trajetória processual, SILVA ainda foi alvo de sentenças condenatórias anuladas pelos Tribunais por incompetência do juízo, reformatio in pejus (duas vezes), prisões relaxadas por excesso de prazo e a inobservância de outras regras do jogo, em um verdadeiro UFC procedimental, porque os julgadores de primeiro grau não provocaram ou enxergaram essas ‘’hidras’’ instruções criminais. O problema procedimental moderno está mais no homem do que no sistema (garantismo nas pessoas), mas precisamos conceber a fase executória e o processo penal como termômetros catalizadores da constituição federal, porque ninguém controla o estado de exceção e não se tolera, no regime acusatório, uma governabilidade inquisitiva, as origens ontogenéticas são diversas. Aqui, não vale tudo. É tempo de “temer a bondade dos bons”.

Talvez não estejamos falando de SILVA, mas de vedar o decisionismo, para julgar por princípios constitucionais e não pela mera investidura, em vedar o livre convencimento arbitrário, aplicando um direito penal do fato e não do autor, rechaçando uma execução do inimigo. Nesse caso, o Estado lutou contra um suposto monstro, uma etiqueta, com armas teratológicas que acabam por mutilar a sua própria face. Afinal, não interessa quem SILVA supostamente é, mas quem nós, verdadeiramente somos. “O inimigo agora é outro”, mas alguns não enxergam essa nova epistemologia processual, atingidos que estão pela “pior cegueira, a de entendimento”.


REFERÊNCIAS

CALAMANDREI, Piero. “ O processo como jogo”. Trad. Roberto Del Claro, Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, 2002, vol.23.

LOPES JR., Aury. Fundamentos do proceso penal. Introdução crítica. São Paulo. Saraiva. 2015.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2013.

SARAMAGO, José. Ensaios sobre a cegueira. Lisboa. Caminho, 1995.

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Ivan Jezler Júnior

Advogado (BA) e Professor

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