Uma triste realidade ocasionada pela cultura do encarceramento
Por Carlo Velho Masi
Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça desconsidera (mais uma vez) a realidade do sistema carcerário brasileiro e expõe o quão distanciado ainda é o Poder Judiciário do dia-a-dia nas penitenciárias do país.
O HC 348.085/PA foi impetrado em favor de um cidadão condenado a 29 anos e 2 meses de reclusão por estupro, na forma continuada, que teve indeferido pedido de prisão domiciliar pelo Juízo da Execução. Impetrado HC perante o TJPA, aquela Corte denegou a ordem, considerando que eventual tratamento poderia ser realizado fora do cárcere, mediante autorização do diretor do estabelecimento. A defesa levou o caso ao STJ, informando que o paciente conta com 60 anos de idade, é cadeirante e está preso desde 15/12/2014.
Em razão de sua debilidade permanente, necessita de tratamento médico fisioterápico diário e de acomodações físicas adequadas, inexistentes na cadeia pública do Estado do Pará. Ressaltou que o paciente cumpre pena em condição degradante e cruel, destacando inclusive que necessita de auxílio para a realização de higiene pessoal. Juntou parecer médico com as seguintes conclusões:
“Devido as condições físicas do interno, onde está na condição de cadeirante, com dificuldade de deambular, e com uma perspectiva limitada de retorno das funções dos membros afetados, como consta em laudo médico, está se tornado inviável um atendimento de qualidade ao mesmo. O interno necessita de fisioterapia, como foi solicitado pelo neurologista, entretanto, esta casa penal não dispõe desse profissional, comprometendo a reabilitação do apenado”
O relator do writ, Min. Ribeiro Dantas, entendeu não estar configurada ilegalidade flagrante que justificasse a concessão da ordem de ofício (uma vez que o HC substitutivo é inadmissível, segundo orientação consolidada nas Cortes Superiores). Lembrou que a decisão originária, do Juízo da Execução, expôs que
“O fato de o acusado estar em uma cadeira de roda não autoriza a prisão domiciliar, uma vez que não restou comprovado que o Estado não possui condições específicas para cuidar do acusado, uma vez que o Centro de Recuperação conta com serviço ambulatorial”.
Mesmo assim, o TJPA entendeu que
“no laudo médico consta que o paciente precisa de fisioterapia e medicação, portanto, observa-se que a prescrição médica foi referente apenas a medidas atinentes à reabilitação deste, não demonstrando a extrema debilidade exigida pela lei. Ademais, o Centro de Recuperação informa que o referido paciente está na condição de cadeirante e com dificuldade de deambular, portanto, não se trata de condição de pessoa paraplégica, como alegado pela defesa, o que também por si só não ensejaria tal medida excepcional”.
Para o Tribunal local, o atendimento que o preso precisaria poderia ser fornecido pelo Sistema Único de Saúde da região, conforme preconiza o art. 14, § 2º, da Lei de Execuções Penais. Logo, ao considerar que o paciente necessitaria apenas de tratamento para uma reabilitação, o TJPA reputou que a situação não se enquadraria na hipótese do inciso II do art. 318 do CPP. Outrossim, o crime teria sido praticado contra a própria família do paciente, o que inviabilizaria seu retorno ao local do crime, em convívio direto com as vítimas.
O voto condutor do HC no STJ analisou que
“Na hipótese dos autos, conforme se depreende das decisões impugnadas, os pareceres técnicos não revelam que o paciente, portador de deficiência física, esteja extremamente debilitado. Na verdade, o que se recomenda é o tratamento de reabilitação com fisioterapeuta, em razão da doença grave preexistente à sua condenação”.
Por fim, o Ministro Relator afirmou que,
“em se tratando de sentenciado condenado por crime sexual, praticado, de forma reiterada, no âmbito doméstico, não seria recomendável sua colocação no local dos crimes e o convívio direto com os familiares que foram vítimas das agressões”.
O HC acabou não sendo conhecido, à unanimidade.
Pois bem. Ainda que não tenhamos maior clareza quanto à situação de fato por trás do precedente mencionado, as considerações do STJ não deixam de ser sintomáticas de uma cultura de encarceramento que predomina entre os juízes. Do inteiro teor da decisão, observa-se que as graves denúncias trazidas pela defesa sequer foram averiguadas a fundo e que a decisão se reporta a decisões prévias que também não adotaram o cuidado de requisitar diligências no sentido de efetivamente apurar a situação, o que é, indubitavelmente, dever do Poder Judiciário, uma vez acionado.
Como sói ocorrer em casos semelhantes, imputa-se à defesa a demonstração “inequívoca” do constrangimento sofrido. Entretanto, há que se ter o bom senso de perceber que, em casos de violações ocorridas no interior de estabelecimentos prisionais, a defesa enfrenta barreiras por vezes invencíveis, dependendo, não raro, da boa vontade dos agentes que lá atuam. A real situação dos presos é algo que só um exame in locu possibilita e poucos são os magistrados da Execução Penal que efetivamente conhecem a real situação, quem dirá desembargadores ou mesmo ministros de Tribunais Superiores.
Convém recordar que, em maio de 2015, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347/DF (Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016), alegando a sistemática violação de direitos fundamentais da população carcerária no sistema prisional brasileiro em função de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal. Pediu o reconhecimento da figura do “estado de coisas inconstitucional”[1], com a adoção de providências estruturais urgentes[2].
O Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, concedeu parcialmente a cautelar requerida, a fim de determinar aos juízes e tribunais do país que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão. Determinaram, ainda, aos juízes que estabeleçam, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; e à União que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado (“proporcionar recursos e meios para financiar e apoiar as atividades e programas de modernização e aprimoramento do Sistema Penitenciário Brasileiro”, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos”). Os valores não utilizados pelo fundo deixam de custear não somente reformas ou construção de novos presídios, mas também projetos de ressocialização que, inclusive, poderiam reduzir o tempo no cárcere.
Segundo o Min. Marco Aurélio, relator da ADPF, a situação das penitenciárias no Brasil é degradante, sendo marcada pela violação dos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da vedação de tortura e de tratamento desumano, da assistência judiciária e dos direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos. A maior parte dos detentos está sujeita à superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho. O cárcere é amplamente dominado por organizações criminosas. É insuficiente o controle quanto ao cumprimento das penas, a discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual.
Existe uma violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à higidez física e integridade psíquica. A superlotação e a precariedade das instalações no sistema prisional brasileiro configuram, mais do que a inobservância da ordem jurídica, um “tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia”. Assim, as penas privativas de liberdade acabam se convertendo em penas cruéis e desumanas.
O STF reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do “vexaminoso” sistema penitenciário nacional, diante do quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária de todos os poderes públicos da União, dos estados e do Distrito Federal (“falha estatal estrutural”).
Ante tal quadro, a solução, ou conjunto de soluções, para ganhar efetividade, deve possuir alcance orgânico de mesma extensão, ou seja, deve envolver a atuação coordenada e mutuamente complementar do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, dos diferentes níveis federativos, e não apenas de um único órgão ou entidade.
Os estabelecimentos prisionais brasileiros funcionam hoje como instituições segregacionistas de grupos em situação de vulnerabilidade social. Encontram-se separados da sociedade os negros, as pessoas com deficiência, os analfabetos. E não há mostras de que essa segregação objetive reintegrá-los à sociedade, mas sim, mantê-los indefinidamente apartados, a partir da contribuição que a precariedade dos estabelecimentos oferece à reincidência.
Quando o Estado atrai para si a persecução penal e, por conseguinte, a aplicação da pena, visando à ressocialização do condenado, atrai, conjuntamente, a responsabilidade de efetivamente resguardar a plenitude da dignidade daquele condenado sob sua tutela. A pena não pode se revelar como gravame a extirpar a condição humana daquele que a cumpre. Deve funcionar sim como fator de reinserção do transgressor da ordem jurídica, para que reassuma seu papel de cidadão integrado à sociedade que lhe cerca.
A deficiência do sistema penitenciário reverte consequências gravíssimas e dramáticas para a própria sociedade brasileira, pela incapacidade do sistema de tratar essas pessoas com o mínimo de humanidade, o que faz com que os índices de reincidência no Brasil sejam dos mais altos do mundo, simplesmente porque o sistema não é capaz de ressocializar, de humanizar e de dar um mínimo de preparo para essas pessoas quando elas saem do sistema.
O sentenciado, ao ingressar no sistema prisional, sofre uma punição que a própria Constituição da República proíbe e repudia, pois a omissão estatal na adoção de providências que viabilizem a justa execução da pena cria situações anômalas e lesivas à integridade de direitos fundamentais do condenado, culminando por subtrair ao apenado o direito ao tratamento digno.
O sistema penitenciário brasileiro vive situação precária e caótica, cuja prática, ao longo de décadas, vem subvertendo as funções primárias da pena, constituindo, por isso mesmo, expressão lamentável e vergonhosa da inércia, da indiferença e do descaso do Poder Público, cuja omissão tem absurdamente propiciado graves ofensas perpetradas contra o direito fundamental, que se reconhece ao sentenciado, de não sofrer, na execução da pena, tratamento cruel e degradante, lesivo à sua incolumidade moral e física e, notadamente, à sua essencial dignidade pessoal.
A necessidade de assegurar-se proteção às minorias e aos grupos vulneráveis qualifica-se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito. A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. Tal opção, por isso mesmo, há de ter consequências efetivas no plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das liberdades públicas e do próprio regime democrático.
Com esses fundamentos, o STF reconheceu a gravidade da situação e a responsabilidade estatal, inclusive do Judiciário, pelas graves violações de direitos humanos nas nossas prisões. Passado um ano da decisão liminar, não há mostras sequer de que ela seja conhecida, muito menos absorvida pela prática judicial. A cultura do encarceramento revela-se cada vez mais inflexível, permeando a atuação das instâncias oficiais (Polícias, Ministério Público e Judiciário), fortemente influenciada pelo “populismo penal midiático” (a chamada “imprensa inquisitiva”), fator que promove a criminalização do acusado, isolando o discurso criminológico crítico tendente a um Direito Penal mínimo (ZAFFARONI et al, 2012, p.60).
O Poder Judiciário, contaminado pela racionalidade punitivista, contribuiu para a formação do “grande encarceramento” (WACQUANT, 2001, p. 55-57) nas últimas duas décadas, ao obstaculizar inúmeras hipóteses concretas de estabelecimento de filtros minimizadores da prisionalização (“substitutivos penais” – p. ex. penas pecuniárias, suspensão condicional da pena, livramento condicional, medidas cautelares alternativas, etc).
Diante disso, não surpreende que seja mais fácil manter preso um cidadão cadeirante e com progressivos problemas de saúde do que averiguar a raiz do problema e reconhecer que, hoje, salvo alguma rara exceção desconhecida, não existem no Brasil presídios em condições adequadas de receber pessoas com deficiência física. O mesmo se diga quanto a outras tantas doenças graves que invariavelmente acabam levando a óbito quem delas padece no seio do sistema penitenciário nacional. É uma triste realidade que precisa ser conhecida, denunciada e combatida, seja de forma estrutural (como pretende o STF), seja em cada caso específico levado à apreciação dos juízes.
REFERÊNCIAS
WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; FERRAJOLI, Luigi; TORRES, Sergio Gabriel et al. La emergencia del miedo. Buenos Aires, Ediar, 2012.
NOTAS
[1] Nomenclatura cunhada pela Corte Constitucional da Colômbia (Sentencia nº SU-559, de 6 de novembro de 1997; Sentencia T-068, de 5 de março de 1998; Sentencia SU – 250, de 26 de maio de 1998; Sentencia T-590, de 20 de outubro de 1998; Sentencia T – 525, de 23 de julho de 1999; Sentencia T-153, de 28 de abril de 1998; Sentencia T – 025, de 22 de janeiro de 2004), que pressupõe (a) uma situação de violação generalizada de direitos fundamentais; (b) a inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a situação; e (c) a superação das transgressões exigir a atuação não apenas de um órgão, e sim de uma pluralidade de autoridades.
[2] O tema também é discutido nos Recursos Extraordinários nos. 580.252/MS, 641.320/RS, 592.581/RS e nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos. 5.170/DF, 5.356/MS