Vedação de excesso e de proteção insuficiente em Direito Penal
Por Diógenes V. Hassan Ribeiro
No Brasil há algumas – embora poucas – decisões que examinam essa questão oriunda do direito germânico. Deriva da concepção de que o Estado deve proteger os cidadãos, por isso que a Constituição contém, genericamente, mas especificamente também, mandatos de criminalização.
O Ministro Gilmar Mendes, no voto condutor da decisão da maioria no RE 418.376-5/MS, que teve concluído seu julgamento em 9 de fevereiro de 2006, foi quem primeiro, salvo engano meu, ao menos no âmbito do direito penal, suscitou o princípio da proteção deficiente. Para tanto, além de fundamentar seu voto na jurisprudência e na doutrina alemã, mencionou artigos publicados em 2005 na Revista da Ajuris, por Lenio Luiz Streck[1] e Ingo Wolfgang Sarlet[2].
Essa decisão foi proferida no sentido de negar provimento ao recurso extraordinário contra decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso que havia acolhido recurso de apelação do Ministério Público contrário à extinção da punibilidade, da sentença, por união do réu que havia cometido estupro em uma menina que tinha, à época do fato, 9 anos de idade. O Ministro Joaquim Barbosa inaugurou a divergência ao argumento de que não se podia admitir que a menina exercia a sua livre vontade de convivência, tendo ficado grávida logo que completou 11 anos, no início da menstruação. E, na sequência do julgamento, o Ministro Gilmar Mendes trouxe os brilhantes acréscimos da fundamentação que constam da ementa do acórdão.
O Supremo Tribunal Federal acolheu esse entendimento, posteriormente, no âmbito dos direitos sociais, em que conectava a compreensão ao mínimo existencial, enunciando que havia, nesses casos, vedação de proteção insuficiente ao poder público, enfim ao Estado (v.g. Agr. STA 223/PE, j. 14.04.2008; Agr. RE 763.667/CE, j. 22.10.2013).
No âmbito do direito penal esse princípio novamente amparou a decisão que admitiu a constitucionalidade do porte de arma de fogo desmuniciada no HC 102.287/MG, julgamento em 28 de fevereiro de 2012, caracterizado como crime de perigo abstrato. Esse julgamento ocorreu na Segunda Turma do STF, com o voto vitorioso do Ministro Gilmar Mendes, contra o voto do Relator, o Ministro Celso de Mello.
Nesse julgamento o Ministro Gilmar Mendes sustenta e fundamenta, em voto longo e erudito, o cabimento da análise da proporcionalidade, que estaria também baseada na vedação de proteção deficiente, não apenas na vedação do excesso, este que seria o lado negativo da interpretação.
A análise elaborada insere importantes questões sobre a imposição de controle de constitucionalidade em matéria penal. Com efeito, se há precedentes e demais decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria cível, tributária, administrativa, processual, em geral, relativamente aos limites e pressupostos, além de outros aspectos, do controle de constitucionalidade, em matéria penal há uma pobreza, por assim dizer no sentido quantitativo, de decisões.
E, de fato em matéria penal geralmente o parlamento tem uma larga margem de atuação, que não encontra claros óbices constitucionais. Por outro lado, percebe-se que o próprio Supremo Tribunal Federal, quando recebe ações de declaração de inconstitucionalidade tem, o que é até natural, diante da gravidade da decisão, apresentado uma certa demora para decidir. E, mesmo no exame dessa matéria, de forma incidental, em habeas corpus, recursos extraordinários, ou outros recursos, tem havido alguma demora, de certo modo compreensível.
Isso ocorreu, por exemplo, com o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, na vigência e na redação que lhe deu a Lei nº 11.705/2008, que previa a necessidade de colher o sopro do motorista ou o sangue para análise, que continha, então, a toda a evidência, várias inconstitucionalidades, entre as quais violava o direito ao silêncio e os aspectos correlatos e, ainda, eventualmente, a integridade física do motorista, com relação a qual que, aliás, o Supremo Tribunal Federal já havia impedido, em época mais distante, a coleta de material para o exame de DNA para a prova da paternidade, no direito de família.
Nesse caso da embriaguez, por certo, suponho, deve ter havido uma certa parcimônia do STF com o legislador, deixando de pautar recursos em que, obrigatoriamente, deveria examinar esses argumentos de inconstitucionalidade, tanto que, em dezembro de 2012, com a Lei nº 12.760, foi novamente alterada a redação do art. 306 do Código de Trânsito e, então, a tipificação penal do crime de embriaguez.
No voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes naquela ação constitucional foi exposta toda a carga de mandatos de criminalização constantes da Constituição Federal, no sentido de comandos ao legislador ordinário. Somente o art. 5º da Constituição contém quatro comandos de criminalização, conforme os incisos XLI, XLII, XLIII e XLIV, mas também o art. 7º, X, o art. 225, § 3º, e o art. 227, § 4º.
Diante disso tudo, há, é certo, comandos de criminalização constantes da Constituição Federal, e há, ainda, possibilidade de análise, no âmbito do controle constitucionalidade em matéria penal, sobre a vedação de excesso juntamente com a vedação de proteção deficiente. Assim, por um lado o legislador tem de atuar positivamente, editando legislação, em conformidade à Constituição, conforme aqueles preceitos expressos. Mais do que isso, possui, por igual, uma ampla margem de legislar em matéria penal, quando, então, haverá o necessário exame sobre a vedação de excesso e vedação de proteção deficiente.
Entretanto, não é possível, na interpretação da lei penal, restritiva de direitos e da liberdade, que é, superar o princípio de que leis restritivas que devem ser interpretadas restritivamente, por força até do princípio da legalidade, não sendo possível, na nossa compreensão, adotar interpretação ampla com base invocando o chamado princípio da proteção deficiente.
[1] A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais (março de 2005, nº 97).
[2] Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência (junho de 2005, nº 98).