A vida é bem jurídico indisponível?

A vida é bem jurídico indisponível?

A resposta a essa pergunta divide estudiosos, não só da seara criminal, mas também do direito constitucional e do direito internacional. Seguem-se breve considerações sobre fundamentos sólidos para uma resposta juridicamente coerente.

Em primeiro lugar; há que se deixar claro que a afirmação de que a Constituição Federal de 1988 determina que a vida é bem jurídico indisponível é crassamente incorreta.

A palavra vida aparece 177 vezes na Constituição de 1988 (de acordo com o texto atual). Já a palavra indisponível só aparece de modo relevante (para esta discussão) no art. 127, onde preceitua:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Afirmar que ao MP cabe a defesa de interesses “individuais indisponíveis” não diz muito para o tópico em comento. Ainda que admitamos equivalência, no referido artigo, entre “interesse” e “direito” (alegando mera falha técnica), o texto constitucional não define quais são os direitos individuais indisponíveis. Nitidamente não pode se referir a todos os direitos individuais do Capítulo I do Título II da CF/88.

Quanto ao direito à vida, especificamente, o que a CF/88 afirma é que este é inviolável. Inviolabilidade e indisponibilidade, em especial do ponto de vista do direito, possuem natureza bastante distinta. Violar traz a ideia de “violentar, desonrar”, enquanto dispor traz a ideia de “resolver sobre, determinar”.

Pode-se dizer que o Estado tem a prerrogativa de violar a liberdade dos cidadãos dentro das normas legais, restringindo-a em determinadas circunstâncias. Não possui, porém, a possibilidade de dispor livremente desta liberdade, ou seja, de arbitrariamente limitá-la fora dos termos estritamente pré-estabelecidos.

Esse exemplo demonstra que é possível discernir uma graduação entre inviolabilidade e indisponibilidade. Diferem em alcance. Dispor supõe uma amplitude de competência muito maior do que violar. Quem pode dispor pode violar; nem todo que pode violar pode dispor.  

Como apontado, a CF/88 não trata da questão da disponibilidade dos direitos individuais especificamente. Usa, ao tratar do direito à vida, apenas o termo inviolabilidade.

Na realidade, a palavra inviolável e a palavra inviolabilidade aparecem na CF/88, somadas, oito vezes. Em apenas uma delas, no caput do art. 5º, há relação com o bem jurídico vida. Colacionemos os artigos que tratam de inviolabilidade, afim de reforçar o distanciamento da noção de indisponibilidade:

Art. 5º.  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;  
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;  
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;  

Art. 27. O número de Deputados à Assembléia Legislativa corresponderá ao triplo da representação do Estado na Câmara dos Deputados e, atingido o número de trinta e seis, será acrescido de tantos quantos forem os Deputados Federais acima de doze.
§1º Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando- sê-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município; 

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

Resta claro que a CF/88 não coloca a vida como bem jurídico indisponível. Faz, contudo, a menção de que o direito à vida é inviolável. Grifa-se aqui a palavra direito por um motivo que é relevante para a discussão aqui proposta.

Mesmo quando fala de inviolabilidade, no art. 5º caput, a CF/88 refere-se ao direito à vida, colaborando com a compreensão de que não pode haver um dever à vida, criado sob a égide do que estabelece este artigo. Significa dizer que não pode o Estado obrigar o cidadão a decidir, por exemplo, prolongar sua vida a qualquer custo.

Transformando isto num exemplo prático: a decisão judicial que obrigasse paciente diagnosticado com um tumor hepático a passar por intervenção cirúrgica para a qual os médicos apontam como melhor resultado possível uma sobrevida de apenas alguns anos, no caso deste paciente (adulto, capaz e consciente) se recusar, optando por deixar a doença seguir seu curso, apenas medicado para alívio da dor, seria ilegítima e ilegal.[1]

Importante mencionar, em adição, que bem jurídico não pode ser entendido como sinônimo do objeto sobre o qual o conceito se projeta. Estes são mantidos numa relação do tipo conter/estar contido. O conceito “vida”, abstratamente, difere da noção de bem jurídico vida. Aquele está contido neste, que o contém.

O direito penal não protege a vida (em sentido abstrato), mas visa proteger, através de sanções determinadas, o bem jurídico vida. Em termos práticos fica fácil esta compreensão: se o direito penal protegesse a vida, como elemento conceitual abstrato, qualquer violação desta despertaria seu interesse, o que não ocorre.

Quando alguém morre em resultado de velhice, desastre natural ou porque é atacado por um animal selvagem o direito penal fica inerte. Esta supressão da vida não lhe diz respeito.

Quando, porém, uma pessoa, com vontade livre e consciente, dispara arma de fogo, sem estar em legítima defesa, com a intenção de matar outra pessoa e assim o faz, o direito penal entra em ação. Isso ocorre porque o bem jurídico vida foi lesionado por uma conduta típica, antijurídica e culpável.

Conforme se sustentou acima, a legislação brasileira não permite uma conclusão definitiva sobre a indisponibilidade dos direitos individuais (ou sobre quais destes seriam indisponíveis).

Parte dos doutrinadores alegará que são indisponíveis os direitos de personalidade. Parte dirá que indisponíveis são os direitos fundamentais. A falta de um alicerce constitucional sedimentado, que permita uma definição clara, gera enorme diferenciação teórica, variando sensivelmente entre os ramos do direito.

Caminhando para as últimas linhas argumentativas em defesa da negação da indisponibilidade do bem jurídico vida. O direito prevê diversas situações em que se dará ao cidadão a possibilidade de colocar em risco sua vida (dispor desta segundo sua consciência).

O próprio fato do Estado recrutar alguns cidadãos para guerra é prova inconteste de que, em determinas condições, será ele (Estado) que efetivamente colocará a vida em risco (disporá dela em certa medida).

Além disso, do ponto de vista penal, o consentimento real do ofendido em esportes marciais, ainda que estes possam levar (e em alguns casos levem) a morte, é atípico para boa parte da doutrina de escol[2].

O aborto de anencéfalo, julgado pelo STF na ADPF 54, também foi considerado ato atípico, sedimentando a tese de que a vida não é indisponível, mas que há casos, no ordenamento jurídico pátrio, que a exposição a risco ou mesmo a supressão da vida não são condutas criminalmente puníveis.

O STF também já manifestou entendimento no sentido de que, no ordenamento jurídico brasileiro, não existem direitos que se revestem de caráter absoluto[3], reforçando os argumentos acima mencionados.

Dado o exposto, faço eco ao posicionamento de que a vida não é bem jurídico indisponível. Note que isso não diminui, em nenhuma medida, a relevância da proteção e, como já demonstrado, da inviolabilidade do direito à vida.

Apenas vincula decisões jurídicas sensíveis, cada vez mais comuns à medida que a medicina avança em sua capacidade de postergar a hora precisa da morte encefálica, bem como do avanço nas discussões transdisciplinares sobre ortotanásia, à necessidade de abandonar um discurso ultrapassado e paternalista que se resumia a assumir a posição de que a vida é bem indisponível e pronto – dura lex, sed lex.


NOTAS 

[1] Conforme atestam rotineiramente os oncologistas, esta decisão não é incomum. Muitos pacientes nesta situação preferem expirar em casa, ladeados por familiares e não num hospital.

[2] Por muitos: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 6ª ed.  Curitiba, PR: ICPC, 2014. p. 261.

[3] Por exemplo, verificar o RMS 23.452/RJ, de relatoria do Min. Celso de Mello.