ArtigosCrime, Arte e Literatura

Vidas Secas e a vingança do retirante

Vidas Secas e a vingança do retirante

Mais uma vez Graciliano Ramos se faz presente em nossa coluna, que preza pela união do direito e da literatura, pois o primeiro se encarrega de levar exemplos ao segundo, entretanto, o segundo é o único que com sucesso consegue demonstrar como o direito é entendido em inúmeras partes do mundo e nas mentes das pessoas.

Mesmo que essas pessoas estejam fadadas ao desconhecimento e às agruras de uma vida árdua e em eterno desalento, destinadas à ignorância e a uma luta pela sobrevivência.

Vidas Secas (1938) é esta luta do homem que algumas vezes se entende como animal, como besta carregando suas ancas abaixo do intrépido sol, carcomido pelas indelicadezas do agreste sertão. Outras vezes, se enxerga como filho da natureza e merecedor de um voo mais elegante por debaixo desse mesmo sol.

Esse é Fabiano. Pai de família desolado por suas intempéries, carregando filhos, esposa e cão pelas lavas quentes do rústico nordeste brasileiro, em busca de uma facilidade ao menos na vida.

Mas as dificuldades são intensas. Numa de suas idas à pequena cidade, depois de caminhar pelas bordas do sertão e encontrar pousada numa casa de um fazendeiro que o aceita para o trabalho, roubando seus esforços em troca de um punhado de sementes e um telhado arrebentado para sua família, Fabiano se faz entreter em meio às pessoas que falavam e conversavam.

Ele próprio não tinha facilidades com as palavras, nunca havia sido instruído, grunhindo quando precisava de algo que não podia definir com palavras.

Convidado ao jogo por um policial, entrega-se à sorte na mesa de jogatina e vence. Esquece o mundo, bebe um pouco, cai em alegria e em tristezas por uma noite na pequena cidade.

Enraivecido por ter perdido seu dinheiro para um capiau do deserto, o policial o segue até uma grande árvore e lá atrás do maciço tronco exaspera Fabiano.

Só que o sertanejo não sabia ao menos se defender. Faltavam-lhe palavras, lhe careciam os verbos, sumiam as frases e sentenças de defesa; grunhia feito bicho, como o animal que imaginava, muitas vezes, debaixo do sol, ser.

O soldado amarelo, como ficou conhecido o personagem na obra e pela visão de Fabiano, judiou do corpo do roceiro e junto com mais alguns amigos fardados e protegidos pela lei acertavam-no com a bainha de seus facões, causando dores imensas.

Mas Fabiano aguentou a surra calado e passou aquela noite na prisão, pensando que sua esposa o esperava com os mantimentos que fora comprar e que seus filhos já deveriam ter ido para cama. De fato, a cabocla pensou em seu marido, mas suas dores e a de seus filhos supunham aguardar o outro dia.

Solto, Fabiano pensava em tudo. O outro dia, a vingança, as dificuldades, a vida de bicho, a surra que havia levado de outro homem.

Outro homem e não a lei. Para o jeca apanhar do governo é algo normal e muitas vezes necessário. Apanhar do governo, para ele, não é descredito nem desmerecimento, mas algo que notaram que deve ser corrigido e que ele ainda não havia reparado, por sua ignorância.

Então é normal apanhar do governo. Mas apanhar do homem, do soldado amarelo, que é como chamava o seu verdugo, isso já era outra coisa. Ser castigado pelo fato de ter ganho o jogo de um homem fardado, militar sertanejo que batia em desesperados, era coisa que provocava a vingança, e ele deveria se vingar.

Antes preso e ser reconhecido por seus colegas de cela como o homem que matou o soldado amarelo a faca e por honra do que levar para a cama de madeiro e sem colchão, toda a noite, a vergonha de não ter feito nada.

E isso consumia Fabiano. Vingança! Era o que um ser meio homem meio animal deveria fazer.

E os pensamentos se avolumavam mais ainda quando as crises de sua vida aumentavam. A cachorra da família doente, a mulher que sempre reclamava da cama da madeira sonhando com uma cama de couro trançado, os filhos que se refastelavam nus na sujeira em torno da casa junto com os preás e outros bichos.

Isso não era vida, e sabia que logo que a seca voltasse e o inverno findasse teria que se meter no deserto do sertão novamente, atrás de sobrevida.

E os pensamentos se avolumavam. Apanhar do governo era normal para o caboclo, mas nunca levar soco no rosto de alguém camuflado e protegido pela farda, será que era só no sertão que isso acontecia? Será que na cidade humanizada dos homens estudados se apanha dessa forma? Nunca, na concepção de Fabiano.

Certa vez, ao retornar pela noitinha, encontrou o soldado amarelo perdido no meio do sertão, como um pobre animal indefeso. Essa seria a sua hora, a vingança predileta, sem ninguém ali ao lado, só ele, sua bainha e o soldado amarelo.

A vingança seria doce como a salobra que bebia para matar a sede de quando em vez, seria amarga pois o levaria ao cárcere, mas e daí? O homem tinha que manter sua honra em meio ao rustico onde somente se safava vivo o mais forte.

E ele notava ser mais forte, pois o soldado acabrunhava-se em sua farda, com medo de Fabiano ao reconhece-lo de noites anteriores. Assustava-se com a possibilidade de ser estocado pela faca cega do jagunço vingativo. E era isso mesmo que os olhos do sertanejo evidenciavam.

Por seus pensamentos passavam o soldado amarelo sangrando e deixando a vida, a ponta de sua faca vermelha e sua honra mantida. Vingança! Seria insuportável e inconcebível a ideia de não extrair a vida naquela noite, de alguém que não merecia viver.

Naquele momento, o soldado amarelo representava o fazendeiro avarento, as reclamações da mulher e a dolorosa cama de madeira e seu estrado aflitivo, as angustias do sertão e da pobreza em que vivia, os filhos “feito bicho” seguindo os passos do pai, a ignorância que não o deixava nem ao menos falar. Tudo o que mais odiava cabia no soldado e ganhava vida com os seus suspiros assustados.

Pensou mais uma vez que seria preciso e certeiro, sua raiva não passara, ouviu do soldado um questionamento de onde ficava o caminho de volta, mas deu de ombros, pensava apenas na morte daquele que representava seu infortúnio. Mostrava o ódio em seus olhos, ao lembrar da noite na cadeia, das pauladas e da surra.

Ele distinguia que essa surra foi dada pelo homem que vestia a farda, mas não pela lei. Sentiu que seria diferente, respeitado como homem dentro da cadeia, mas como homem seria visto, bravio e honrado. Imaginou sua família vagando pelo deserto após o inverno em busca de água e isso deu-lhe mais ódio.

Era seu momento. Pensou, mas não com seus neurônios, se é que pensou, foi com sua intuição e pressentimento, sentiu que seria um assassino procurado ou um pai de família morto.

Sua intuição o levou ao final de sua jornada perante ao soldado amarelo. Com voz macia, apontou-lhe o caminho que havia perdido, dizendo como chegar aonde queria.

Pensou que como bicho que era, deveria ouvir um pouco da razão que tinha, pois essa era a única coisa que diferenciava ele de seus algozes.


Leia mais textos da coluna Crime, Arte e Literatura aqui.

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo