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Vigilância em tempos de insegurança: sobre drones e beija-flores

Por Bernardo de Azevedo e Souza

Narram os biólogos que em algum momento, durante o Cretáceo, as flores começaram a desenvolver cores e perfumes que sinalizaram a presença de pólen aos insetos. Simultaneamente, estes invertebrados desenvolveram um complexo sistema para extrair os minúsculos grãos e, sem qualquer pretensão, passaram a fertilizar outras flores. Ao longo dos tempos, as flores complementaram o pólen com a energia mais rica do néctar para seduzir mais insetos aos rituais de polinização. As abelhas conceberam ferramentas sensoriais para ser atraídas pelas flores, que, por sua vez, desenvolveram as propriedades necessárias para estimular aquelas. No decorrer de toda a história evolutiva, insetos e flores obtiveram êxito porque, fisicamente, fizeram bem uns aos outros, fenômeno que se convencionou chamar de coevolução.

O mais surpreendente nesta interação coevolutiva é que, a partir dela, foram originadas transformações em organismos sem qualquer ligação imediata com a espécie original. A simbiose entre flores e insetos acabou criando uma oportunidade para organismos muito maiores, os beija-flores, que não somente aprenderam a extrair o néctar das plantas como também desenvolveram uma forma extremamente incomum de mecânica de voo. Apesar das restrições existentes em sua estrutura física, os beija-flores criaram uma nova forma de rotação de asas, permitindo que, por meio de movimentos ascendentes e descendentes, flutuassem no ar ao extrair o néctar de uma flor. Eis os curiosos saltos da evolução: as estratégias de reprodução sexual das plantas acabaram, mesmo sem querer, moldando o desenho das asas dos beija-flores.

Em seu livro “Como chegamos até aqui”, Steven JOHNSON[1] explica-nos que a história das ideias e das inovações se desenrola de modo idêntico. A obra trata justamente destas estranhas correntes de influência, cunhadas pelo autor de efeito beija-flor. O expert em história da tecnologia relata que as invenções e inovações surgem geralmente como uma tentativa de resolver um problema específico, mas, uma vez que entram em circulação, acabam provocando mudanças que teriam inicialmente sido difíceis de prever, pertencentes a domínios completamente diversos. Trata-se de um padrão de mudança que sempre ocorreu ao longo da história evolutiva.

De modo mais claro, um dos mais extraordinários casos de efeito beija-flor da história contemporânea foi a invenção da imprensa por Johannes Gutenberg nos anos 1440. A inovação possibilitou a impressão de livros relativamente baratos e portáteis e provocou, por via de consequência, um aumento nas taxas de alfabetização. Ademais, como a condição de presbiopia (não enxergar de perto) era comum a toda a população, porém não percebida pela ausência de leitura, o invento de Gutenberg também expôs esta falha na acuidade visual, originando um novo mercado para a fabricação de lentes (óculos).

Um século mais tarde, dois curiosos experimentaram alinhar as duas lentes, ao invés de colocá-las lado a lado e observaram que os objetos pareciam ampliados. Era o início do microscópio, que posteriormente deu origem à descoberta da célula, abrindo caminho para uma revolução na ciência e na medicina e levando à criação das modernas vacinas e antibióticos que hoje utilizamos.

Se a criação da imprensa por Gutenberg, no século XV, conduziu a esta gama de transformações sociais, direta ou indiretamente afetadas por ações humanas, o que podemos esperar dos efeitos beija-flor decorrentes do advento da Internet? Qual a expectativa que devemos ter do futuro (se é que o devemos)?

Quando o Google lançou sua ferramenta de busca original, no ano de 1999, houve um verdadeiro avanço em relação a todas as técnicas anteriores de pesquisa no arquivo da rede. O Google acabou tornando gratuitamente a Internet mais útil, a serviço de todos. Contudo, no decorrer dos anos começou a vender publicidade relacionada às solicitações de pesquisa, consequentemente esvaziando a carteira de publicidade dos jornais locais nos Estados Unidos. Ninguém – nem mesmo os fundadores do Google – percebeu que mudanças estavam ocorrendo. Hoje, o Google assume um surpreendente controle sobre todos, possibilitando reviver acontecimentos indesejados e influenciando até mesmo na identidade (eu sou aquilo que digo ser ou aquilo que o Google diz que eu sou?), aspectos que abordei nas colunas anteriores.

Nesse sentido, talvez um dos efeitos beija-flor mais vivenciados atualmente é justamente o espantoso desenvolvimento das tecnologias de vigilância, que parece cada vez mais aproximar o horizonte temível de um controle social absoluto sobre os seres humanos. Aquilo que há meio século era apenas ciência-ficção na obra “1984”, de George Orwell (publicada originalmente em 1949), hoje, pela força do progresso técnico e a proliferação da informática, se torna uma realidade tangível. Nunca o controle eletrônico de indivíduos e o alcance do “pesquisável” estiveram tão presentes como nos dias de hoje. A vigilância está tão infiltrada na corrente sanguínea da vida contemporânea, que, na ótica de BAUMAN, pode ser considerada como uma das “pouquíssimas indústrias em que jamais ninguém precisará ter medo de ficar sem energia e de perder o emprego”[2]. Todos estão expostos à “luz indireta” a que se refere VIRILIO[3]. Não há mais como fugir à vigilância: os “olhos eletrônicos” estão em toda parte. Somos permanentemente monitorados, checados, testados, apreciados, avaliados e julgados.

E quando falamos em vigilância, sobretudo nos tempos líquidos, de incertezas e de inseguranças em que vivemos, devemos direcionar nossa preocupação às máquinas letais da atualidade: os drones. Embora não sejam necessariamente novos, havendo relatos de experiências pioneiras na Primeira Guerra Mundial, estes veículos aéreos motorizados, controlados à distância, passaram a ser desenvolvidos e utilizados com maior frequência a partir do atentado terrorista ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, em Nova York, para fins exclusivamente militares.

Com o passar dos anos foram desenvolvidas novas finalidades para os drones, mas os impactos que esta tecnologia ocasiona no cotidiano vêm assumindo intensa preocupação nos últimos anos, em todos os níveis: um drone munido de uma câmera pode vigiar em tempo integral qualquer pessoa, a uma distância segura, sem que seja percebido. Para além das questões relacionadas à intimidade e à privacidade, os drones também vêm sendo utilizados para a prática de crimes. Os transportadores de drogas (denominados “mulas”) vêm sendo substituídos, em diversos países, por estas máquinas aéreas. No início deste ano, um drone carregado com 2,7 quilos de metanfetamina tentou ultrapassar, sem êxito, a fronteira dos Estados Unidos com o México (ver aqui).

Os drones também estão sendo utilizados em operações policiais, (re)acendendo o debate sobre a valoração da prova coletada para posterior utilização no processo penal. No Rio Grande do Sul, a Brigada Militar e a Polícia Civil usaram um drone em julho de 2013 (ver aqui), em uma operação conjunta contra uma facção que dominava o tráfico de drogas na zona sul de Porto Alegre, e na cidade de Eldorado, na região metropolitana. O equipamento, munido de câmeras controladas remotamente, foi utilizado para mapear locais de difícil acesso.

A produção das máquinas cresce diuturnamente nos Estados Unidos, já sendo também uma realidade no Brasil. Com designs cada vez mais diversificados, a tendência é que tenham seus formatos cada vez menores. No ano de 2009, um modelo de drone minúsculo foi desenvolvido por integrantes de uma equipe de pesquisa de robótica na Universidade de Harvard. Com aproximadamente 3 centímetros, o Robobee – anagrama das expressões Robot (Robô) e Bee (Abelha) – é um dos menores dispositivos já criados, em forma de inseto, modelado para alçar voo. Sua aerodinâmica assemelha-se ao bater de asas de um beija-flor, mas em velocidade extremamente superior, de modo a torná-lo praticamente invisível aos olhos humanos.

A utilização dos drones no cotidiano, sem dúvida, fomenta inúmeros debates. Há um campo teórico aberto. A nova geração destas máquinas voadoras poderá ver tudo, ao mesmo tempo em que permanece confortavelmente invisível, literal e metaforicamente. A vigilância digital é uma afiada espada de dois gumes, que ainda não sabemos como manejar com segurança. Se de um lado estamos mais protegidos da insegurança do que qualquer geração anterior, de outro, nenhuma geração anterior, pré-eletrônica, vivenciou os sentimentos de insegurança experimentados nos dias de hoje. Os drones podem ser atualmente tão minúsculos quanto um beija-flor. Contudo, ao contrário deste, a procura pelo “néctar” é incessante, vigiando, controlando e dizimando todos aqueles que cruzam o seu caminho.

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[1] JOHNSON, Steven. Como chegamos até aqui: a história das inovações que fizeram a vida moderna possível. Tradução de Claudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. pp. 9-11.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 110.

[3] VIRILIO, Paul. A inércia polar. Tradução de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. pp. 11-32.

_Colunistas-BernardoSouza (1)

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