Violência de gênero ‘maquiada’ nas Universidades
Por Chiavelli Falavigno e Rafhaella Cardoso
O presente ensaio pretende analisar a percepção “mascarada” e “banalizada” da violência (principalmente a psicológica, moral e até sexual) de gênero contra a mulher no ambiente acadêmico, e quais os avanços (e/ou retrocessos) que têm sido verificados para enfrentar o cenário historicamente demarcado por uma visão androcêntrica e patriarcal que ainda pode ser verificada nas salas de aula ou mesmo no preenchimento de quadros para docentes do Ensino Superior.
O conceito de gênero, para as Ciências Sociais, não se confunde com o conceito de sexo. Enquanto este estabelece as diferenças biológicas entre homens e mulheres, aquele se ocupa em determinar as diferenças sociais e culturais que definem os papéis dos homens e das mulheres na sociedade.
“A violência doméstica contra a mulher constitui-se de um conflito de gênero, portanto existe uma relação de poder, entre o gênero masculino, representado socialmente como forte, e o gênero feminino, representado socialmente como o fraco”. (MONTENEGRO, 2015, p.115). Segundo o caput do artigo 5º da lei 11.340/06, violência contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico (…)”. O artigo 7º da mesma lei estabelece as várias formas de manifestação dessa violência. É necessário, então, interpretar os artigos 5º e 7º conjuntamente, pois deter-se somente ao artigo 5º é insuficiente, sendo vagas as expressões lá contidas. (DIAS, 2015, p.49).
A luta e o reconhecimento pelos direitos da mulher tiveram o seu início no âmbito internacional com a pensadora inglesa Mary Wollstonecraft, cuja obra A Vindication of the Rights of Women teceu dura análise à pretensa subalternidade feminina defendida por Rousseau (ZACARIAS, et al, 2015, p.13). No contexto brasileiro, a pensadora Nisia Floresta publicou o primeiro livro sobre direitos da mulher. Seu trabalho exigiu que as mulheres fossem consideradas como seres inteligentes e merecedores do respeito pela sociedade. (ZACARIAS, et al, 2015, p.23).
A partir do engajamento do movimento de mulheres e do movimento feminista contra essa forma de violência, surge, em 1981, no Rio de Janeiro, o SOS Mulher. A busca desses movimentos (de mulheres e feministas) por parcerias com o Estado para a implantação de políticas públicas resultou na criação do Conselho Estadual da Condição Feminina, em 1983. Posteriormente, em 1985, surge o Conselho Nacional dos direitos da Mulher e a primeira Delegacia de Defesa da Mulher que foi adotada, posteriormente, por outros países da América Latina. (MONTENEGRO, 2015, p.100).
Mesmo com o advento da Lei 11.340/2006 é importante frisar que, no ambiente acadêmico, tal violência está longe de ser uma realidade superada. Em especial, neste trabalho, destaca-se a percepção da ocorrência das seguintes formas de violência envolvendo as pessoas do gênero feminino: psicológica, moral e até mesmo sexual.
A violência psicológica no cenário acadêmico possui consequências mais graves, visto que a mulher é impedida de exercer a liberdade em relação ao agressor. A violência psicológica está disposta no art. 7º, II, da Lei Maria da Penha: “entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões (…)”. (DIAS 2015, p. 72).
A agressão emocional é tão ou mais grave que a violência física e, nesse contexto, se encaixa no conceito de violência psicológica, tipicamente de vítimas discriminadas, rejeitadas e humilhadas. Seja por incidentes de Professores diante de alunas, seja entre os próprios colegas em classe, o que muitas vezes não é objeto de discussão e é tratado como corriqueiro.
A violência moral, por sua vez, é uma forma de desclassificação, inferiorização ou ridicularização da mulher, que ofende a sua autoestima e o seu reconhecimento social. Ela ocorre mais frequentemente do que é relatada nos ambientes acadêmicos, como se fosse algo natural e suportável pelas discentes ou professoras.
Já o conceito de violência sexual está inserido no 7º, III da Lei Maria da Penha como sendo: “entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força (…)” (DIAS, 2105, p.74). Há dados ainda não completos, mas que já identificam certo grau de estupros ou assédios sexuais cometidos por professores em desfavor de alunas, ou mesmo entre os próprios colegas em sala ou em festas patrocinadas ou sob o conhecimento das IES.
Em pesquisa realizada na Internet sobre o assunto, no início de Janeiro de 2016, com cerca de 170 entrevistados, dentre eles, 116 do gênero feminino e 52 do gênero masculino, a grande maioria estudantes ou profissionais da área acadêmica, com idade acima de 20 anos, destacaram que:
1) 9% responderam que raramente há discussão em sala de aula sobre questão do machismo, feminismo e opressão contra as mulheres;
2) 42,3% afirmaram que já presenciaram alguma cena de violência física, moral ou sexual no seu ambiente universitário (inclusive festas) e a cena foi tratada com naturalidade, ao passo que também 42,3% afirmaram nunca ter presenciado mas admitem já ter ouvido falar de episódios envolvendo estudantes ou professores.
3) 36,3% dos entrevistados responderam que acreditam que, em até certo ponto, as mulheres estão em condições de igualdade em relação aos homens no ambiente acadêmico, porque apesar de terem os mesmos acessos que os homens, seu status permanece subjugado. Já 28% responderam que “não, as mulheres não estão em condições de igualdade com os homens no ambiente acadêmico, mas têm percebido esta realidade evoluindo”;
4) E, por fim, 46,2% dos entrevistados responderam que ainda persiste em alguma medida, a cultura machista no ambiente acadêmico, incrustada no senso comum de certa parte da população universitária e, muitas vezes, naturalizado em forma de piadas e ditados populares que denigrem a mulher (veja aqui).
Para corroborar esta pesquisa, outros dados importantes sobre a cultura do machismo e da violência mascarada no ambiente acadêmico, foram relatados em artigo da Professora da UFRJ Vanessa Batista Berner e da pesquisadora Heloísa Melino:
“No início do ano, foi notícia o enfrentamento ao machismo protagonizado pelas mulheres da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em resposta a uma declaração de um professor de Direito Empresarial da universidade que disse em sala de aula que “As leis são como as mulheres, foram feitas para serem violadas”. Poderíamos escrever diversos megabytes de denúncias sobre o machismo velado e escancarado presente nas universidades. Infelizmente. Esses casos, no entanto, servem para ilustrar o que salta diuturnamente aos olhos: precisamos falar do machismo e dos processos de exclusão de mulheres e de pessoas trans dentro das universidades!” (2016, p. 1)
Berner e Melino apontam que “a estrutura das universidades é patriarcal, então a violência perpetrada pelo professor contra a estudante na assembleia docente é naturalizada a ponto de ele agredi-la e se retirar triunfante, confiando que não será punido por sua atitude autoritária, discriminatória, machista” (2016, p.1). Por este motivo houve greve por parte das mulheres na UFRJ, na qual lançaram um Manifesto contra a total ausência de políticas institucionais, tais como: combate ao assédio, ou sobre regulamentação de licenças maternidade, paternidade, gestante e adotante para os alunos da Graduação e Pós (2016, p.1).
A participação das mulheres no ambiente acadêmico é singular se comparada ao seu acesso, pois, de acordo com o MEC, em 2012, 61,2% das formadas são alunas do gênero feminino; além disso, em 2012, formaram-se mais pessoas do sexo feminino do que masculino (diferença gira em torno de 236 mil mulheres a mais que os homens formados). Outro dado apontado por Berner é que a própria Diretoria do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras não possui nenhuma mulher integrante (BRASIL. MEC, 2012).
Enfaticamente, assevera Berner que, em uma rápida análise sobre os eventos científicos e congressos, percebe-se que as mulheres raramente compõem mesas, mas sempre estão na plateia, em cargos de assessoramento, e só quando há algo sobre gênero é que estão autorizadas a falar (2016, p.1)
Mas este cenário precisa ser alterado em suas bases. Prova da mudança, ainda que tímida, foi a iniciativa do MEC e dos organizadores do ENEM, no ano de 2015, que propuseram como tema da redação, “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, bem como introduziram questão relacionada a trechos da escritora Simone de Beauvoir (MORENO, 2015).
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (2016), em estudo específico (PERRONE; MENEGUETI, 2014), verificou que nos últimos quatro anos, em que pese aumentado o número de associadas, o número de homens ainda é maior. Mas o que se notou de mais alarmante foi o número de publicações masculinas serem quase 80% se comparadas as emitidas por mulheres, isoladamente. Ou seja, ainda que presentes, as mulheres ficam na condição de plateia, com reduzido espaço de fala.
Restou claro que, longe de esgotado o assunto, tornou-se indispensável a participação da mulher nas discussões jurídicas para que o tema do machismo no ambiente acadêmico seja efetivamente combatido. Assim, as pautas sobre questões estritamente de gênero, ou sobre quaisquer outros assuntos relevantes socialmente, podem vir a fazer parte de um debate que não menospreze ou não diminua a participação feminina, principalmente em ambientes de produção crítica do saber, como a academia.
REFERÊNCIAS
BERNER, Vanessa Batista; MELINO, Heloisa. O necessário enfrentamento ao machismo nas universidades. In: Revista Cult. Coluna da Márcia Tiburi no Portal Uol. Disponível aqui.
COORDENAÇÃO DE EDIÇÃO. Mulher, envie seu artigo para publicação no Boletim IBCCRIM de março de 2016. Estímulo à participação de mulheres nas publicações do IBCCRIM. In: Notícias IBCCRIM. Disponível aqui.
DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2015.
MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan. 2015.
MORENO, Ana Carolina. Enem traz violência contra mulher na redação; veja análise de professores. In: PORTAL G1 NOTÍCIAS. Disponível aqui.
PERRONE, Tatiana Santos; MENEGUETI, Vanessa. Cadê as mulheres? Uma análise da participação feminina no IBCCRIM. 2014. In: Boletim IBCCRIM. Disponível aqui.
VELLOSO, Renato Ribeiro. Violência contra a mulher. Disponível aqui. Acesso em: 15 nov. 2015.
ZACARIAS, André Eduardo de Carvalho – et al. Maria da Penha: comentários à Lei 11.340/06. São Paulo: Anhaguera. 2015.