Violência estatal e população LGBT
O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, um a cada 19 horas. Não por menos, a ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, com o tema “Resistir para Existir, Existir pra Reagir”, em 29 de janeiro de 2018, veio a público chamar atenção para as graves violações de direitos humanos da população de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil, considerando tratar-se do país que mais assassina essas pessoas no mundo, tendo um número três vezes maior de assassinatos em relação ao segundo colocado no mundo, México, com média de 50 mortes.
A ANTRA possui em seu sítio eletrônico um mapa dos assassinatos, assim como o Grupo Gay da Bahia realizou esse mapeamento em período anterior, considerando que o monitoramento dessas mortes ocorre em sua grande parte por meio da sociedade civil, haja vista não apenas o vácuo legislativo que essa população conta, mas a inexistência de mecanismos ou campos nas próprias ocorrências, que permitam as polícias efetivar investigações que tenham por móvel exatamente a questão de gênero.
Assim, para além da dificuldade do mapeamento, essas mortes se misturam a grande taxa anual de mortes violentas no Brasil, perdendo-se, assim, nesse ponto, a motivação desses crimes, ou seja, mais uma vez a questão de gênero, que auxiliaria na construção de políticas públicas efetivas para essa população.
As questões de gênero, por outro lado, chegam ao debate público por meio da mobilização dos movimentos feministas e LGBT, e, embora a dificuldade de se providenciar na confecção de leis que reconheçam esses direitos e protejam essa população, no âmbito do Poder Legislativo, é fato que o Poder Executivo, em âmbito nacional, estadual e até municipal, providenciou na execução de determinadas políticas públicas, ao longo dos anos, efetivando-se os maiores reconhecimentos de direitos, no entanto, por meio do Poder Judiciário, o qual tem sido instado a se manifestar e a garantir o direito dessas populações.
Entretanto, nesse ponto, é interessante olharmos especificamente para o sistema penal, haja vista que embora a condição de vítima da população travesti e transexual mulher, conforme elucidamos acima, no mais das vezes, encontramos é a captura seletiva pelo sistema penal dessas pessoas enquanto acusadas, rés e criminosas.
Assim, partimos do pressuposto que o patriarcado e o capitalismo são matrizes históricas do sistema de justiça criminal, pois como bem expõe Vera Regina Pereira de ANDRADE (2004, p. 260-90), tanto o capitalismo quanto o patriarcado são expressos, reproduzidos e relegitimados pelo sistema de justiça criminal, aparecendo, desde a sua gênese, como um controle seletivo classista, sexista e racista, no qual a estrutura de gênero opera desde sua estrutura conceitual, do seu saber legitimador, de suas instituições e linguagem.
Com Joan SCOTT (1995, p. 7-99) aprendemos que o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder, e no interior do sistema penal/prisional, pensado e gestado por homens, essas relações e desigualdades que daí advém se amplificam, quanto mais quando se verifica que as concepções morais arraigadas na sociedade são potencializadas no interior desse mesmo sistema.
E nesse contexto, AGUINSKY, FERREIRA e CIPRIANI (2015, p. 292-304) aduzem que a população de travestis e de transexuais se caracteriza como uma das mais vulneráveis e selecionáveis pelo sistema penal e de segurança no Brasil, não apenas pelas estatísticas de morte, mais de 602 mortes entre 2008 e 2014, sendo o primeiro no mundo com maior número de mortes de travestis e transexuais, mas, também, pela precariedade de acesso a bens e serviços básicos.
CIPRIANI (2017, p. 135-154) aduz que as travestis estão recorrentemente vulneráveis a processos de violência doméstica e abandono familiar, de humilhações, de violências institucionais e de agressões das mais diversas, mas, de acordo com FERREIRA (2015), ao qual faz referência, uma das mais problemáticas violências enfrentadas pelas travestis e transexuais seria a violência estatal, especialmente no que diz com o tratamento empreendido pelos agentes de segurança pública, inclusive no âmbito prisional.
Interessante, portanto, é a pesquisa efetivada por Ana Gabriela Braga e Victor Siqueira Serra, que encontramos no artigo intitulado ‘O fantasma do macho no corpo travesti: violência, reconhecimento e poder jurídico’, o qual faz parte da obra Questões de Gênero, uma abordagem sob a ótica das ciências criminais, que tem como Organizadoras Mariângela Gama de Magalhães Gomes, Chiavelli Facenda Falavigno e Jéssica da Mata, da editora D’Plácido, do ano de 2018.
Nesse artigo, tendo por referencial o discurso jurídico, os pesquisadores se propõem a analisar 50 acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, num período que compreende os anos de 2013 a 2017.
Da análise, a qual não terei espaço suficiente para tratar aqui, resultam questões interessantes à reflexão, tal como o fato de que dos 50 acórdãos analisados nenhum trata a travesti no feminino; sendo que o nome social dessas pessoas vem sempre representado pela expressão “vulgo”; as travestis figuram muito mais enquanto acusadas do que propriamente vítimas; 31 dos casos analisados envolviam prostituição; sendo que os crimes imputados às travestis diziam com delitos patrimoniais e de tráfico de drogas; valendo referir que enquanto vítimas de homicídios, a violência que se apresentava era extrema e de muita crueldade.
Fiquei curiosa e fui até o sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e lancei a palavra travesti no campo de pesquisa da jurisprudência, obtive o total de 28 acórdãos, os quais não analisei quantitativamente, tampouco qualitativamente, mas apenas das ementas pude perceber a semelhança com a pesquisa dos autores, na medida em que nenhuma ementa tratava a travesti no feminino.
Por isso talvez Braga e Serra aduzam que
O que se observa em relação às travestis é que, apesar de algumas conquistas, seus corpos – que rompem com as expectativas culturais – estão submetidos a diversos processos de exclusão, marginalização e, no limite, criminalização.
De acordo com os autores, o discurso jurídico, assim, traz a representação das travestis enquanto desajustadas, perigosas, acusadas, criminosas; ou seja, esse mesmo discurso nada mais faz do que concretizar as expectativas sociais e ele mesmo as produz, legitimando essa violência, por que se traduz no lugar da própria violência.
Talvez seja por isso que os autores finalizem argumentando que:
Os discursos jurídicos, carregados de representações desviantes e criminalizadoras da travesti, como o “risinho”, legitimam as violências – e constituem eles mesmos a própria violência. Ao controlar quem pode reivindicar a identidade feminina e constituir a travesti como “pessoa afeita ao crime”, o discurso judicial (re)produz a marginalização e vitimização como constituintes da experiência travesti hoje no Brasil. E, dentro de um projeto de construção de uma sociedade justa, livre e igualitária, nos livrar de nossos fantasmas, nos parece um passo importante.
Mais do que importante, necessário e urgente, eu diria. Afinal, por nenhuma a menos!
REFERÊNCIAS
AGUINSKY, Beatriz; FERREIRA, Guilherme Gomes; CIPRIANI, Marcelli. Vidas (hiper)precárias: Políticas Públicas penais e de segurança face às condições e vida de travestis e transexuais no Rio Grande do Sul. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 6, p. 292-304, 2015.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 48, p. 260-90, maio/jun. 2004.
CIPRIANI, Marcelli. Feminismos, Transexuais, Direito à Existência, pág. 135-154 in GOSTINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda (Orgs.). Estudos Feministas Por um Direito menos machista. Vol. II. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: experiência social e mecanismos particulares de encarceramento no Brasil. Curitiba: Multideia, 2015.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20 (2), p. 7-99, jul-dez. 1995.