A relação entre vítimas de homicídios por armas de fogo e egressos do sistema penitenciário
A relação entre vítimas de homicídios por armas de fogo e egressos do sistema penitenciário
Mais um local de crime. Desço da VTR, peço licença aos inúmeros olhos curiosos e aos celulares cujos flashes irritantes me tiram o foco da tentativa hercúlea de isolar o local de crime (para preservar os vestígios e reduzir as eventuais contaminações). As marcas de pneus no chão do carro que supostamente conduziam os autores do homicídio já foram pisoteadas pelos populares.
E eis que me pego divagando sobre as aulas de processo penal da faculdade: “Como são fáceis esses procedimentos de preservação de local de crime na letra fria do CPP”. Volto à realidade: no chão, corpo crivado de “balas”, cercado de cápsulas “ponto-quarenta”. Nenhum parente ainda havia chegado. Já passamos o QTC pelo rádio para a Criminalística. O rabecão do IML chegou mais cedo, já estava nas imediações, outros homicídios em municípios vizinhos, aguardaria para não dar duas viagens à capital. Observo os pneus baixos, “as bandejas já devem estar cheias”, penso friamente.
Tento coletar algumas informações com populares. Todavia, esquivando-se, um me diz que não mora ali, está apenas de férias na casa da tia; outros tantos, estavam apenas de passagem pelo local. Difícil. Respostas evasivas como sempre. Ninguém quer se comprometer. Tento compreender. Contudo, naquele amontoado, uma fala quase ao pé-de-ouvido, lá do fundo, me chama a atenção.
Levanto minhas orelhas (tirocínio policial uma ova!), e me ponho a ouvir atentamente: “Esse cara acabou de puxar cadeia. Lili cantou mês passado. Já tava com destino certo: a vala”. De pronto faço login pelo celular no aplicativo SAP (Sistema de Administração Penitenciária) e checo as informações: Bingo! Lá estava ele, ora cadáver: “Situação: EM LIBERDADE. Última Ocorrência: LIVRAMENTO CONDICIONAL”. Verdade, lili (liberdade) cantou mês passado.
Na vida de minhas retinas tão fatigadas (verso do poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “No meio do caminho”, que foi publicado em julho de 1928 no número 3 da Revista de Antropofagia), poderia ter esquecido esse acontecimento casual e outros tantos análogos no meu dia-a-dia de trabalho. Não obstante, recordo o ensinamento do professor e criminólogo Riccardo Cappi nas aulas de Criminologia Aplicada à Segurança Pública: “Os problemas de pesquisa nos cercam. Contudo, para enxergá-los temos de ‘tirar os pés do chão’”.
De tal modo, problematizar um tema nunca é um entrave, mas ponto de partida necessário para toda e qualquer pesquisa científica minimamente séria. Numa turma de pós-graduação (lato sensu) profissionalizante composta por Agentes de Segurança Pública, em sua maioria bacharéis em Direito, como sói acontecer na (de)formação dos acadêmicos desta área, o modus operandi intelectual de pesquisa não evoluiu, está petrificado. Enfim, “a forma de abordagem enclausura e congela o tema de pesquisa transformando-o no fim quando deveria ser o início da pesquisa” (grifo do autor) (CARVALHO, 2013, p. 24).
E ainda nos alerta Salo de Carvalho (2013, p. 24):
Tenho cada vez mais tenho a impressão de que os juristas teóricos e os atores processuais têm aversão à vida. Vida representada no seu trabalho pelas pessoas que demandam Justiça. A hipótese ganha relevância em momentos como os atuais, em que é possível perceber que a valorização da harmonia (coerência e completude) do sistema supera qualquer preocupação com a realidade das pessoas que buscam o amparo do direito e das suas instituições. (2013, p. 49).
Enfim, deixemos de coisas, cuidemos da vida (verso da canção intitulada “Hora do almoço”, composta por Belchior e lançada em 1995 no álbum “Um Concerto Bárbaro: Acústico ao Vivo”).
A que transcrevi no início do texto, me fez tirar os pés do chão, de tal modo que me propus a elaborar uma singela pesquisa com o objetivo de lançar luzes sobre os homicídios por arma de fogo, fundamentalmente sobre suas vítimas, identificando dentre essas, ocorrências de egressos do sistema prisional de Sergipe.
Após delimitar e problematizar o objeto da pesquisa, tinha de escolher e justificar o locus de estudo. Escolhi o município de Nossa Senhora do Socorro em Sergipe (cidade que compõe a região metropolitana de Aracaju).
Por que escolher como foco para esta pesquisa os homicídios por arma de fogo ocorridos no município de Nossa Senhora de Socorro? A resposta vem através de dados estatísticos.
De acordo com o Atlas da Violência publicado no ano de 2017 (foram excluídas dessa pesquisa os dados referentes às chamadas Mortes Violentas com Causa Indeterminada – MVCI), o referido município no Estado de Sergipe ficou na 3ª colocação entre os mais violentos do país com taxa de 96,4, quando se soma o número de homicídios e de Mortes Violentas com Causa Indeterminada (MVCI) por 100 mil habitantes.
Nossa Senhora do Socorro ficou apenas atrás, respectivamente, dos municípios de Lauro de Freitas/BA (taxa de 97,7) e Altamira/PA (taxa de 107). Para corroborar esse fato, segundo dados do Atlas da Violência 2018, Sergipe liderou no ano de 2016 a maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes no país, chegando a taxa de 64,7, ficando bem à frente de Alagoas (54,2) e Rio Grande do Norte (53,4).
Com uma população estimada em 181.503 pessoas (IBGE 2018), densidade demográfica 1.025,87 hab/km² (censo 2010, IBGE), Nossa Senhora do Socorro registrou em 2015, 159 homicídios, com uma taxa de 89,7, e 12 casos de MVCI, com o índice de 6,8. (Atlas da Violência ano 2017 – IPEA).
E por que estudar homicídios nos quais tenha figurada a arma de fogo como instrumento meio?
No ano de 2016, num cenário que contabilizou 62.517 homicídios registrados, de acordo com o Atlas da Violência 2018, 71,1% dos homicídios foram praticados com arma de fogo. Ou seja, de cada dez pessoas que praticam homicídio no Brasil, pelo menos sete delas utilizaram como meio a arma de fogo.
Esse fato se deve, possivelmente, por se tratar do meio mais eficaz, mesmo nós todos tendo a sensação (principalmente após a criação do Estatuto do Desarmamento) de que ter acesso a uma arma não se tornou tarefa fácil, até mesmo no mercado paralelo está cada vez mais difícil adquirir uma arma. As “feiras-de-rolo”, ou, como nós chamamos aqui em Sergipe “feira-das-trocas”, onde se tinha acesso fácil a essas armas de fogo, são raras, e as ainda existentes, foram sendo empurradas mais e mais para a extrema periferia das cidades.
Ainda de acordo com o Atlas da Violência 2018, em números absolutos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil, somente nos últimos 10 anos. Segundo Cerqueira e de Mello (2013, in Atlas da Violência 2018), se não fosse o Estatuto do Desarmamento, os homicídios teriam crescido em torno de 12% além das taxas existentes.
Ainda segundo Cerqueira (2014, pp. 57-59):
[…] a proliferação da arma de fogo parece ter sido o fator mais importante para explicar o aumento dos homicídios na década de 1990. (…) 1991/2000 – Aumento de 33,33% na demanda por armas resultou em aumento de 44 pontos % na taxa de homicídios.
Para fins de construção dessa pesquisa, foi realizada a coleta de dados (homicídios por arma de fogo) no sistema do banco de dados utilizado pelo Instituto Médico Legal de Sergipe chamado “Controle de Cadáveres – CC”. Para tanto, foi selecionado o período de entrada de corpos no IML dos anos de 2016/2017/2018, ou seja, de 1/1/2016 às 00:00 até 31/12/2018 às 23:59. Foi realizado o filtro de informações através do campo “tipo de ocorrência”, escolhendo-se apenas a opção “morte violenta por arma de fogo”, cujo resultado não distingue o gênero das vítimas.
Após o filtro desses dados inseridos (por data: “01/01/2016 até 31/12/2018; por tipo de ocorrência: “morte violenta por arma de fogo”; por hora de entrada: “00:00 até 23:59”) no sistema do IML, obtive os seguintes dados por ano:
No ano de 2016 foram encontrados 110 resultados como morte violenta por arma de fogo, sendo 3 mulheres (aproximadamente 3%) e 107 homens (aproximadamente 97%).
Em 2017, foram encontrados 114 resultados como morte violenta por arma de fogo, sendo 4 mulheres (aproximadamente 4%) e 110 homens (aproximadamente 96%).
Já no ano de 2018, tivemos uma redução significativa, sendo 88 resultados como morte violenta por arma de fogo, sendo 1 mulher (aproximadamente 1%) e 79 homens (aproximadamente 99%).
Com relação aos dados de egressos do sistema penitenciário de Sergipe, tivemos os seguintes resultados quando inserimos os nomes das vítimas de homicídio por arma de fogo em Nossa Senhora do Socorro/SE nos anos pré-determinados (2016, 2017, 2018) no Sistema de Administração Penitenciária (SAP):
- No ano de 2016 foram encontrados 35 resultados (inserindo-se no campo “nome do detento” como parâmetro os nomes das vítimas encontradas no sistema do IML) já tendo sido egresso de alguma unidade penitenciária de Sergipe. Esse número corresponde a um percentual de 32,71 do total de vítimas de homicídio em 2016 naquele município.
- Em 2017, foram 29 resultados, o que corresponde a 26,36% do total de homicídios registrados naquele ano.
- Em 2018, encontramos 24, o que corresponde a um percentual de 30,38 do total de vítimas de homicídio por arma de fogo no município de Nossa Senhora do Socorro.
Se reunirmos os dados dos 3 (três) anos, teremos como média entre a relação de vítimas de homicídio por arma de fogo em Nossa Senhora do Socorro e egresso do sistema penitenciário os seguintes dados: do total de 320 homicídios registrados nesses anos, tendo apenas a comparação feita entre os homens (total 287 ou aproximadamente 97%), um percentual total de 30,33% (ou 88 resultados) de vítimas de armas de fogo tem registro de passagem pelo sistema penitenciário de Sergipe.
Desse percentual de vítimas de homicídio, apenas 4 (quatro) estavam sob monitoramento, ou seja, com a chamada tornozeleira eletrônica (ou 4,55% do total). E outras 4 (quatro) eram considerados fugitivas de alguma das unidades penitenciárias do Estado (ou 4,55% do total).
Deste modo, podemos concluir, analisando os anos de 2016, 2017 e 2018, que aproximadamente 1/3 das vítimas de arma de fogo em Nossa Senhora do Socorro são egressos do sistema prisional de Sergipe.
O mais interessante (e trágico) é quando analisamos dentre essas vítimas (com histórico de passagem pelo sistema prisional) quanto tempo após a saída do sistema ela foi assassinada. Para tal, analisamos dentro do SAP, o campo data da saída ou última ocorrência. Observamos que 46% deles foram mortos em menos de 1 ano após a saída do sistema penitenciário, dentro desse percentual temos 7% em menos de 1 mês após sair do sistema. 45% foram vítimas em período superior a 1 ano e em 9% dos casos não obtivemos informações suficientes para precisar esse interstício.
As médias de idade entre as vítimas de armas de fogo e as vítimas egressas do sistema não diferem muito, respectivamente, 28 anos e 30 anos. Segundo o Atlas da Violência 2018, com dados do ano de 2016, 33.590 jovens foram assassinados no país, tendo a taxa de homicídios dessa faixa etária (15 a 29 anos) chegando a 65,5 por 100 mil jovens.
Quanto ao grau de escolaridade, a pesquisa apontou que, mais da metade dos egressos vítimas de homicídio em Socorro não possuíam sequer o ensino fundamental completo.
Após ler a trilogia sobre o sistema carcerário brasileiro do escritor e médico Drauzio Varella (Carandiru, Carcereiros e Prisioneiras), entendo agora perfeitamente a fala dele quando instigado a falar sobre a violência nas cadeias masculinas e o PCC:
As cadeias de São Paulo têm um sistema jurídico imposto pelo PCC. Então, parte da repressão vem do estado e tem o sistema que eles organizaram. Qualquer desentendimento é julgado em três instâncias. Esse sistema oferece uma certa segurança de que você não vai ser assassinado pelo vizinho. Com isso, conseguiram oferecer aos presos uma segurança que o estado não consegue. Você ouve falar de morte nas cadeias de SP? Fora do estado, onde existe disputa, sim. O PCC é uma hegemonia nas cadeias paulistas, são raras as que eles não dominam. Estão em mais de 90% delas — as cadeias femininas são 100% controladas pela facção. Eles impõem essa regra e elas seguem em paz.
Em seguida, é questionado sobre o que ele pensava a respeito disso, e assim responde:
É um absurdo a bandidagem conseguir dar segurança que o estado é incapaz de promover. Quando você prende alguém, esta pessoa fica legalmente sob tutela do Estado, que não está conseguindo exercê-la. Aí, vem o crime organizado e diz: “Deixa com a gente que nós resolvemos”. É a falência do Estado.
Uma das possíveis respostas para os homicídios de egressos, esteja relacionada às mortes decorrentes de violência policial, a chamada intervenção policial, a qual tem crescido ano a ano no Brasil (“Mais de 5,5 mil assassinatos não estão nas estatísticas oficiais de mortes violentas do Brasil em 2018. São pessoas mortas pela polícia em 18 estados do país que contabilizam as vítimas decorrentes de ações policiais de forma separada.” – dados do Monitor da Violência, Portal G1).
Possivelmente, outra resposta talvez seja dada pelo quase certo retorno do egresso ao mundo do crime (em especial, ao tráfico de drogas), e cujas mortes estejam relacionadas ao acirramento pelo espaço no mercado do tráfico de drogas, lugar onde grande espaço é ocupado pelas mortes de usuários endividados.
No fim, podemos assegurar de fato que o preso, quando ingressa no sistema prisional, não pensa inicialmente quando “lili vai cantar”, mas sim em como fazer alianças para se manter vivo naquele espaço. Ou seja, tentará adequar-se a todo custo às circunstâncias do momento. Pois, como observamos, quando sair do sistema, muito provavelmente o sistema não sairá dele, carregará consigo, além da “cara de prontuário” (expressão descrita no livro “Em busca das penas perdidas” de autoria do criminalista argentino Eugénio Raúl Zaffaroni), uma probabilidade maior de ser o próximo nome a figurar na lista do IML.
NOTAS
CARVALHO, Salo de. Como (não) se faz um trabalho de conclusão de curso: provocações úteis para orientadores e estudantes de direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro. Causas e consequências do crime no Brasil. ed. Rio de Janeiro: BNDES, v. 1., 2014.
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