Vitimologia, justiça restaurativa e How to Get Away With Murder (II)
Por Ingrid Bays
A coluna da semana passada (veja aqui) abordou o episódio nº 11 da segunda temporada (S02E11) de How to Get Away With Murder. Assim, conforme prometido, hoje abordarei brevemente o instituto da justiça restaurativa, técnica de solução de conflitos que prima pela criatividade e sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores.
Pensando no seriado, a primeira reflexão a ser feita é que nosso ordenamento jurídico prevê que a ação penal pode ser pública incondicionada, condicionada à representação ou privada. Para que se possa saber de quem é a legitimidade ativa para propor a ação é necessário analisar qual o delito em tese praticado e em que Capítulo” ou até mesmo em que “Título” do Código Penal está inserido.
Se nenhuma referência específica existir, a regra é ser ação penal pública incondicionada, cabendo ao Ministério Público exercê-la. E nesse ponto é muito importante lembrar do princípio da obrigatoriedade, ou seja, o Ministério Público tem o dever de oferecer a denúncia sempre que presentes as condições da ação (prática de fato aparentemente criminoso; fumus commissi delicti; punibilidade concreta; justa causa) (LOPES JR., 2016, p. 202). Logo, seria possível a aplicação da justiça restaurativa em um caso de homicídio?
Para ingressarmos em uma análise da justiça restaurativa é preciso, logo de início, acreditarmos em uma mudança cultural. É necessário abandonar o sentimento de que o punitivismo tem lógica e razão de existir assim como nos é apresentado. É compreender e, acima de tudo, respeitar aqueles que não esperam que da punição venha um resultado positivo, seja lá qual for o delito cometido. A justiça restaurativa surge como crítica e opção de reforma de um já obsoleto sistema de justiça criminal. Um dos pioneiros da justiça restaurativa, Howard ZEHR (2008, p. 170-171) explica que a crise hoje existente é em razão de vermos o crime por meio da lente retributiva, não conseguindo atender nem as necessidades da vítima nem as do acusado. Nesse sentido, o autor apresenta os dois lados:
Justiça retributiva: o crime é uma violação contra o estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e estado, regida por regras sistemáticas.
Justiça restaurativa: o crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança.
Ainda, a justiça restaurativa pode ser compreendida a partir de estruturas que apesar de serem conceitualmente distintas estão relacionadas, quais sejam:
a) da janela de disciplina social (uma questão de engajamento cooperativo, todos os envolvidos participam do processo);
b) do papel das partes interessadas (sobre as necessidades específicas de cada parte interessada e as respostas necessárias, que consistem na reparação propriamente dita, no assumir de responsabilidades e na reconciliação);
c) da tipologia das práticas (o grau de envolvimento das partes, a reparação da vítima, a responsabilidade do transgressor e a reconciliação da comunidade de assistência).
Percebe-se que diferente do modelo de justiça baseado mecanicamente em leis, atribuição de culpa e punição, a justiça restaurativa possui como enfoque os danos, as necessidades e as obrigações (KONZEN, 2007, p. 83-85).
Aos poucos, a justiça restaurativa vem encontrando espaço no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, ainda existem vários questionamentos acerca de sua institucionalização, como por exemplo, a) a necessidade ou desnecessidade de delimitação de sua abrangência, ou seja, quais os critérios de aplicabilidade e “envio” do caso e quais os legitimados; b) quais seriam os momentos processuais adequados para tento e c) quais seriam as consequências jurídicas de eventual encontro restaurativo, seja bem sucedido, seja frustrado ou se descumpridas as medidas de reparação acordadas (GIAMBERARDINO, 2015, p. 208).
Muito há que se estudar sobre justiça restaurativa e sua aplicabilidade, que no Brasil vem tendo início principalmente nos chamados crimes de menor potencial ofensivo. De qualquer sorte, relacionando ao seriado, o que se conclui é que por vezes é preciso que nos socorramos na ficção para abrirmos a mente para mudanças concretas e reais, investindo na efetividade de propostas alternativas ao nosso fracassado sistema de justiça criminal.
REFERÊNCIAS
GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura para além da punição. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no itinerário da alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.