Você já emprestou sua conta corrente?
Você já emprestou sua conta corrente?
Normalmente, tratamos assuntos de interesse de colegas que atuam ou pretendem atuar na advocacia criminal e entusiastas das ciências criminais. Hoje, no entanto, abro uma especial exceção para tratar de matéria que interessa a todas as pessoas do povo: empréstimo de conta bancária.
Evidentemente, o causo também interessa aos advogados, pois, não raras as vezes somos instados a defender cliente que, de boa-fé, empresta sua conta bancária para determinada operação e descobre-se envolvido na prática de um crime.
Contarei brevemente três casos criminais que envolvem essa costumeira prática da qual, possivelmente, muitos de nós já participaram.
O primeiro caso se deu com homem na faixa dos 50 anos, que chamarei de Lucas. Sem antecedentes, pai de família, residência e trabalho fixos há mais de dez anos.
Foi procurado por seu amigo Rogério – conhecido há muitos anos do templo religioso que ambos frequentavam – que conhecia sua esposa e filhos, participava de festividades em sua casa, aconselhava-o em momentos de dificuldade, etc.
Rogério, empresário e dono de negócio sabido por todos, contou a Lucas que, em razão de dificuldades financeiras, precisou socorrer-se do cheque especial e, sem condições de efetuar o pagamento a tempo, via-se com saldo negativo.
Contou, por fim, que receberia algum dinheiro em cheque, mas que não poderia depositá-lo em sua conta e sofrer os descontos do banco, porque pagaria com a importância outros negócios atrasados.
Lucas, imbuído de total boa-fé, forneceu prontamente os dados bancários de sua única conta corrente ao amigo. Dois dias depois, R$ 90.000,00 foram depositados em sua conta.
Assustado com a exorbitância do valor, que nunca antes tinha visto na frente e em momento algum mencionado por Rogério, Lucas contatou-o imediatamente. Rogério, calmamente, justificou a origem do depósito em negócios de sua empresa e, tranquilizado, Lucas sacou algumas centenas de reais para pagamentos de contas pessoais de Rogério e emitiu novo cheque, não nominal nem cruzado, no valor restante e entregou ao amigo.
Alguns dias depois, Lucas foi procurado em sua casa pelo titular do cheque de R$ 90.000,00 e, em poucos dias, descobriu que tudo se tratava de um golpe de estelionato imobiliário.
Rogério desapareceu, outras vítimas surgiram. Lucas foi indiciado e respondeu processo criminal por apropriação indébita. Somente após a instrução e toda a angústia de ver-se réu em processo criminal (e insolvente em razão do processo cível), foi absolvido em razão do sucesso de tese de erro e outras provas de sua boa-fé.
Nossa segunda história passa-se com Isabela. Jovem de 20 anos, desempregada. Residente em pensão, foi procurada pelo colega de quarto, o qual conhecia apenas como “Dê”.
Dê pediu sua conta emprestada, explicando que receberia um dinheiro dos pais e prometendo R$ 300,00 como agradecimento.
Em razão das dificuldades financeiras, Isabela aceitou e forneceu seus dados bancários. Dias depois, avisada do depósito, dirigiu-se à agência para efetuar o saque. Solicitada a aguardar pelo malote, Isabela foi presa em flagrante.
Detida, descobriu que se tratava de uma falsa venda de automóvel. Os R$ 5.000,00 depositados em sua conta se referiam ao sinal de compra de veículo que nunca existiu.
Posteriormente, devolvidos à vítima, Isabela segue como ré em processo criminal por estelionato. Dê desapareceu. Ninguém sabe seu sobrenome ou mesmo seu nome verdadeiro.
Por fim, nossa terceira causa se deu com Bernardo. Foi procurado pelo cunhado, Valter, que lhe pediu a conta emprestada para depositar e receber cheque no valor de R$ 75,00. Valter não prometeu nenhuma contrapartida, era apenas um favor entre familiares.
No dia seguinte ao depósito, Bernardo consultou seu extrato e chocou-se com a devolução do cheque. A cártula teria sido roubada em branco do titular emitente.
Diligente, Bernardo procurou por criminalista de confiança que lhe orientou a como proceder para resguardar-se e provar sua boa-fé.
Observem: em momento algum, foi prometido ou mesmo entregue a Lucas qualquer vantagem. Isabela, desempregada, maculou-se por R$ 300,00. Bernardo só quis ajudar uma pessoa da família.
Todos emprestaram suas movimentações financeiras de boa-fé. Mesmo no caso da Isabela, não há que se falar que pelo recebimento de R$ 300,00 estaria compactuando com crime e agindo em dolo eventual. Não há assunção de risco do resultado.
A grande questão que se coloca é o perigo que circunda esta prática tão comum. Como se vê, não está isento aquele que autoriza a benesse apenas a familiares ou condiciona o uso a remuneração para não sair no prejuízo. Na verdade, receber pelo empréstimo da conta nestas ocasiões pode induzir a uma noção de participação no delito.
Seguramente, não desconheço do papel da boa-fé (animus) que, como vimos, se provada com indícios da realidade tem condições de livrar o réu de uma condenação injusta.
Mas há que se convir: até se descobrir que focinho de porco não é tomada, uma vida inteira pode se devastar. Isto porque a conduta do indivíduo traz a aparência do delito, o que demanda apuração pelas autoridades.
Mais do que não possuir antecedentes criminais, existem profissões que sequer permitem a aparição do funcionário como réu em processo criminal. E elucubrar se isso é ou não constitucional não apazigua os ânimos do cliente que precisa colocar comida em casa.
Recomenda-se a pessoas do público em geral absoluta diligência no momento de autorizar o uso de bem pessoal tão delicado, tal qual é uma conta bancária. É preciso lembrar que os desdobramentos independem de sua expectativa subjetiva.
Aos colegas, que procurados a defender pessoas nestas situações, sugiro a busca por elementos fáticos bastantes a provar a boa-fé de seus clientes, como ausência de vantagem proporcional ao delito e outros prejuízos, quase sempre visíveis na exposição despreocupada da imagem, nome e, porque não, liberdade.
Feliz ou infelizmente, os tempos são novos e mesmo as pessoas sem formação jurídica devem ter noção do real impacto de suas atividades cotidianas.