Você sabe o que significa ‘segurança cidadã’?
No momento difícil no qual se encontra a segurança pública no estado do Rio Grande do Sul, penso que seria interessante a construção mais do que urgente de um programa de política pública que se assente na segurança cidadã. Sabemos que os ânimos encontram-se acirrados e compreende-se que as pessoas deixem aflorar as suas passionalidades diante os últimos fatídicos episódios ocorrentes, dos quais também lamentamos, assim como lamentamos os índices alarmantes de homicídios, na sua grande maioria tendo jovens da periferia como vítimas.
Entretanto, em sendo o Estado uma ficção jurídica, exatamente confisca para si o exercício do monopólio do uso da força para que a irracionalidade da pessoa humana não acabasse por aniquilar o outro, o que lhe impõe, assim, através de uma determinada escolha política, promover a segurança de todos e a resolução civilizada dos conflitos existentes, através das instituições que possui, ainda que não se desconheçam as críticas encetadas ao referido modelo.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos produziu em 2009 um relatório sobre segurança cidadã e direitos humanos nas Américas, utilizando nesse documento como um dos meios de partida para a conceituação do que seja segurança cidadã, o fato de que a segurança tem sido desde sempre uma das funções principais dos Estados, os quais dentro do marco de uma democracia exigem evolução no conceito próprio de segurança, haja vista que o conceito utilizado de segurança num Estado autoritário estaria vinculado tão-somente à garantia da ordem como expressão de força e supremacia de poder, enquanto numa democracia essencial seria a promoção de modelos policiais construídos com a participação dos habitantes, sob o entendimento de que a proteção dos cidadãos por parte dos agentes públicos deve se dar em um marco de respeito à instituição, às leis e aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, desde a perspectiva dos direitos humanos, quando na atualidade se fala de segurança, afirma o documento da OEA, esta não se pode limitar à luta contra a criminalidade, mas trata‐se de como criar um ambiente propício e adequado para a convivência pacífica das pessoas.
Por isto, o conceito de segurança deve colocar maior ênfase no desenvolvimento de trabalhos de prevenção e controle dos fatores que geram a violência e a insegurança, ao invés de tarefas meramente repressivas ou reativas perante fatos consumados.
A Comissão dá conta de que a insegurança gerada pela criminalidade e pela violência nas Américas constitui um grave problema, no qual está em jogo a vigência dos direitos humanos, eis que as políticas sobre segurança cidadã devem ser avaliadas sob a perspectiva do respeito e garantia dos direitos humanos, quiçá diante as obrigações assumidas pelo Estado perante a ordem internacional, tal como o Brasil, no sentido de respeitar, proteger, assegurar e promover os direitos em questão.
Isso nos parece de fundamental importância, tendo em conta a associação errônea e preconceituosa que se faz no senso comum de que os direitos humanos seriam ‘privilégios de bandidos’, conforme bem nos explica Caldeira. De acordo com Caldeira,
Na sociedade brasileira os direitos civis e individuais têm associações bem diversas das dos direitos coletivos. Se estes expressaram tanto na era Vargas quanto sobretudo a partir dos anos 70, a expansão de direitos a grupos espoliados e excluídos da cidadania, o fato é que, em relação aos direitos individuais, a associação mais frequente é com privilégios. Enquanto a maioria da população considera essenciais os direitos à saúde, à educação, à previdência social etc., tende a ver como luxo os direitos de expressão, de participação em associações, de liberdade individual. Os direitos civis parecem ser menos conhecidos e valorizados, pelos menos entre as pessoas que eu entrevistei, podendo ser considerados como secundários e igualados a privilégios. É ainda sob essa lógica – a do privilégio –que adquirem sentido todos os desvios sobre os direitos individuais com os quais nos acostumamos e que levam às crenças de senso comum de que rico sempre tem direito e pobre não; de que quem tem poder e dinheiro evita a justiça, que é exercida contra o pobre. É nessa lógica que se pratica o “você sabe com quem está falando?”.
Só que isso é muito perigoso, pois, assim, a população está chancelando uma política de estado meramente repressiva e destrutiva de segurança pública, nem um pouco cidadã e democrática. Talvez seja por isso que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em conclusões ao relatório então referido dá conta de que
as sociedades enfrentam cotidianamente renovados desafios para a convivência democrática, caracterizada pela tolerância, solidariedade e respeito pelos direitos de todas as pessoas que a integram. Neste cenário interagem as diferentes formas de violência, que se apresentam na forma de variadas manifestações, entre as que se destacam: o crime organizado; a presença de um alto número de armas de fogo nas mãos de particulares; o abuso de substâncias entorpecentes; a violência contra as mulheres; a violência contra crianças e adolescentes; a violência contra as populações indígena e afrodescendente; os conflitos que envolvem os movimentos sociais e comunitários; e o fenômeno, poucas vezes tratado com profundidade em suas distintas causalidades, da violência relacionada à delinquência juvenil. Frente a esta situação, vários países da região recorreram a políticas que resultaram historicamente ineficazes para solucionar as demandas sociais sobre segurança cidadã, baseadas em ideias de incrementar a pressão punitiva; reduzir as garantias processuais; ou reduzir a idade de imputabilidade para aplicar o direito penal de adultos a crianças e adolescentes. Por outro lado, a falta de uma adequada resposta do Estado à violência e à criminalidade, em determinadas ocasiões levou à reprodução de lógicas de relacionamento social fundadas na intolerância e na estigmatização de pessoas ou grupos de pessoas, favorecendo o aparecimento de casos de violência extrajudicial, dos quais são responsáveis os chamados grupos de “limpeza social”, como “esquadrões da morte” ou grupos parapoliciais e paramilitares.
Portanto, mais do que nunca precisamos de uma resposta estatal dentro dos parâmetros da chamada segurança cidadã, pois, conforme finaliza Caldeira, brilhantemente,
A sensação de segurança não é tanto uma função da ausência de crime, quanto de distância social. E distância social significa manutenção de privilégios e de uma ordem excludente.
Tornando-se despiciendo argumentar que desigualdade social encontra relação direta, sim, com violência. O que estamos fazendo?