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Você sabe o que é Prisionalização?

Você sabe o que é Prisionalização? Cezar Roberto Bitencourt (2001) possui uma obra muito interessante, fruto do seu doutoramento na Espanha, a qual, ainda em meados dos anos 2000, já trabalhava com a dita falência da pena de prisão, em suas causas e alternativas, título, inclusive da sua publicação.

O autor ao longo de sua obra conta com um capítulo destinado exclusivamente a abordar o que chama de crise da pena privativa de liberdade, que poderia ser objeto de contestação, haja vista a centralidade e o reforço sempre atual da pena de prisão; aduzindo, nesse ínterim, que um dos maiores argumentos a tanto seria o seu fator criminógeno, ou seja, o fato de que a prisão não consegue frear a delinquência, pelo contrário, é produtora de toda a sorte de desumanidade, produzindo, assim, mais violência e consequente criminalidade.

Bitencourt, então, afirma que a maioria dos fatores que dominam a vida carcerária imprime a esta um caráter criminógeno, podendo esses fatores serem classificados em materiais (deficiências em termos de estrutura, higiene, alimentação, entre outros, que causam prejuízos e são nocivos à saúde das pessoas); psicológicos (disciplina que estimula a aprendizagem do crime e a delinquência) e sociais.

Os fatores sociais ou os chamados efeitos sociológicos ocasionados pela prisão são os que nos interessam por ora, haja vista que a prisionalização está inserida no seu bojo, conforme veremos na sequência.

No entanto, é importante referir que Bitencourt traz nesse ponto como um dos seus referenciais teóricos as obras de Goffman, as quais são de fundamental importância, haja vista que Goffman aduz para o fato de a prisão tratar-se de uma instituição total, a qual, como toda instituição, absorve parte do tempo e do interesse de seus membros, proporcionando-lhes um mundo particular, o qual sempre terá uma tendência absorvente que justamente se simboliza nos obstáculos que se opõem à interação social com o exterior.

A instituição total, assim, operaria na transformação do indivíduo em um ser passivo, uma vez que, a princípio, todas as suas necessidades dependeriam da instituição, passando o indivíduo por processos constantes de degradações, humilhações e profanações desde a sua admissão, classificação e anulação da sua intimidade, dada a ausência de privacidade.

A prisão, assim, é produtora de um sistema social próprio que se revestiria de algumas características, tais como o fato de que não há como fugir desse sistema, o qual se apresenta de forma rígida, uma vez que a mobilidade vertical é muito difícil de ocorrer no seu interior.

O número de papeis que o indivíduo pode desempenhar nesse sistema é limitado e a seleção do seu papel também o é, além do fato de que desde o momento em que a pessoa ingressa na instituição, é submetida à influência desse sistema social, o qual seria detentor de uma subcultura própria.

Se isso pode ser observado no interior do sistema prisional brasileiro, em sua totalidade, é outra questão, haja vista que devemos considerar a constituição própria do sistema brasileiro, inclusive, em termos históricos, políticos, sociais e culturais, além é claro, de que no Brasil pode se colocar em dúvida falar-se em docilização dos corpos através da imposição das disciplinas, eis que o interior das instituições totais prisionais brasileiras encontra-se no domínio não do Estado, mas de facções que possuem uma relação simbiótica com essa mesma ordem estatal.

Mas é importante refletir sobre o que Bitencourt nos traz em sua obra, através de um grande apanhado doutrinário, inclusive, no sentido de que o valor dominante no sistema carcerário é a posse e o exercício do poder, o que se revela indiscutível, ao menos para nós, nesse ponto, bem como o fato de que no seu interior é evidente a estratificação social da sociedade carcerária, a qual conta com uma gíria própria e com o que chama de código do recluso, o qual se traduziria nas regras básicas da sociedade carcerária.

No entanto, para o referido autor o efeito mais importante que o subsistema social carcerário produz no recluso é a prisionalização, que é a forma como a cultura carcerária é absorvida pelos internos, e que se traduz em assimilação, a qual implica um processo de aculturação, ou seja, as pessoas que são assimiladas vêm a compartilhar sentimentos, recordações e tradições do grupo estabelecido, o que se assemelharia ao que chamamos de processo de socialização.

A prisionalização, assim, produz efeitos negativos à pretensão dita ‘ressocializadora’ e todo o indivíduo que ingressa em uma prisão sofrerá com uma maior ou menor prisionalização.

Bitencourt cita Donald Clemmer e salienta algumas condições que podem, inclusive, estimular uma maior prisionalização: condenações longas; poucas relações com as pessoas que se encontram fora da prisão e que podem exercer influência positiva no recluso; aceitação incondicional dos dogmas da sociedade carcerária, entre outros.

Embora essas constatações possam vir a ser objeto de contestação, quanto mais dada à dinâmica de funcionamento do sistema prisional brasileiro, com suas especificidades próprias, é importante uma reflexão mais atenta ao referido tema, quanto mais quando na última semana foram liberados pelo Ministério de Justiça e de Segurança Pública os dados referentes ao sistema prisional brasileiro, datados até junho de 2016, os quais escandalosamente dão conta de o Brasil tratar-se do terceiro país do mundo que mais encarcera, apenas atrás dos Estados Unidos e da China.

A população prisional brasileira ultrapassou pela primeira vez na história, segundo os dados do próprio governo, a marca de 700 mil pessoas privadas de liberdade, o que representa um aumento da ordem de 707% em relação ao total registrado no início da década de 1990.

Considerando que o déficit de vagas está em torno de 358.663, de acordo com os mesmos dados, e de que o crescimento da população carcerária é exponencial, no nosso caso, tanto em termos de prisões provisórias, utilizadas como antecipação de pena; quanto em sede de execução definitiva, dada a dificuldade de progressão e de extinção das penas, aliado a realidade do nosso sistema prisional, já declarado seu estado de coisas inconstitucional, a prisionalização tende a ser uma realidade que impede a construção de uma sociedade mais justa e menos violenta.

Daí, para concluir, a importância do desencarceramento e de que precisamos sim e urgentemente construir um plano para a redução da população carcerária. Enfim, precisamos muito falar sobre isso!


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. Causas e alternativas. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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