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“Você tem passagem?”

“Você tem passagem?”

Sabe aquela pergunta que pode modificar toda a história da sua vida? “Você tem passagem?” é uma delas.

Essa pergunta geralmente é feita em uma abordagem policial, via de regra, por um policial militar, direcionada a quem se destina a abordagem, independentemente da situação que tenha levado a ela.


Leia também:

  • A primeira abordagem policial é que define se você é usuário ou traficante (aqui)
  • O que você deve fazer quando for abordado pela Polícia Militar? (aqui)

Vou dar um exemplo:

Imagine que Tício responde a uma ação penal pelo crime de tráfico de drogas, na qual lhe é imputada a venda de drogas.

Na época dos fatos, Tício, um jovem com menos de 21 anos, escolheu o caminho errado e optou pelas “facilidades” que o tráfico de drogas poderia lhe proporcionar, sendo, contudo, preso por tal fato.

Tício permaneceu em liberdade durante toda a instrução processual, pois a ele foi concedida liberdade provisória, ainda na análise do auto de prisão em flagrante pela Autoridade Judiciária.

Depois desses fatos, Tício nunca mais se envolveu na prática de crimes e fazia serviços avulsos de ajudante de pedreiro, pintor, dentre outros.

Certo dia, tempos após aquela prisão em flagrante pelo crime de tráfico de drogas, mas sem existir uma sentença penal, demora essa atribuída à própria lentidão do Judiciário, Tício, morador da periferia (“zonas de conflito”), a caminho de casa, caminhando por um local conhecido pelo intenso tráfico de drogas, vê o momento em que uma viatura da Polícia Militar entra na rua e, nessa hora, todos que nela estavam saem correndo, inclusive Tício.

Nessa hora, quando a polícia chega, ninguém fica pra ver o que acontece. Todo mundo tenta sair dali o mais rápido possível.

Os policiais iniciaram uma perseguição e, após conseguirem deter algumas pessoas, dentre elas Tício, revistaram o perímetro e encontraram drogas próximo ao local em que as pessoas foram detidas.

Devidamente revistados, os detidos passam a ser identificados.

Nem preciso dizer, mas aqueles que já responderam ou respondem a uma ação penal têm grandes chances de serem responsabilizados naquele momento pelos eventuais ilícitos penais flagrados.

Foi aí que um dos policiais perguntou para Tício:

Tem passagem?

Ao verificarem que Tício já respondia a uma ação penal, estava em local de intenso tráfico de drogas, correu ao ver a viatura policial, tendo sido encontradas substâncias entorpecentes “próximas” a ele, (provavelmente) responderá mais uma vez pelo crime de tráfico de drogas, mas dessa vez sem nada ter feito.

Tício, pelo seu histórico, pela sua vida pregressa, pagará o pato para sempre.

Só que Tício não é um traficante, ele apenas praticou (no passado) uma conduta (das várias contidas no art. 33 da Lei 11.343/06) considerada criminosa. Mas esse fato infelizmente fará com que Tício seja novamente responsabilizado por um erro do passado, punido duas vezes pelo mesmo fato.

A partir desse momento, Tício responderá a dois processos por tráfico de drogas o que, quase que automaticamente, o transformará em um “traficante” (sem necessariamente ser um) e isso será tudo que basta para a sua estigmatização e identificação como “bandido”, definindo o seu “papel” na sociedade e a sua segregação.

Esse é um exemplo típico dos estudos da criminologia crítica, demonstrando que o desvio primário e a atuação do próprio Estado fazem com que o rótulo colocado em Tício seja determinante para criminalizações futuras, alimentando o sistema e mantendo Tício dentro desse ciclo fatal.

Um grande abraço e até a próxima!

Pedro Magalhães Ganem

Especialista em Ciências Criminais. Pesquisador.

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