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Vontade de morte

Vontade de morte

Diferentemente de qualquer concepção espiritual sobrenatural que muito em breve caracterizaria a metafísica cristã, a metafísica grega clássica se apoiava em três elementos imateriais componentes do ser humano: a capacidade cognitiva, as emoções e o elemento volitivo – formadores da “trilogia” razão / sentimento / vontade.

São componentes imateriais do homem que sustentam a nossa racionalidade, os nossos sentidos e desejos, os nossos comportamentos e atitudes (positivas ou negativas). Complementam o corpo e fazem, especialmente de nós, seres humanos! A tradição religiosa, baseada na filosofia, costuma assim denominar essa trilogia: alma.

E a alma é volúvel. Ora combina razão e vontade (cálculo); ora sentimento e vontade (paixão); às vezes razão e sentimento (inércia). Quase sempre, ao menos naturalmente, razão, sentimento e vontade se contemplam e se reconhecem mutuamente.

Matar alguém pode não requerer, necessariamente, vontade. Não é novidade que o Direito Penal trata a ausência de intenção com desclassificação do dolo, com excludentes e com exculpações.

Uma conduta negligente pode levar à morte, o que não significa desejo de matar. O mesmo quanto à imprudência, à imperícia, à legítima defesa etc. Em certas ocasiões era impossível exigir outra conduta que não a de morte, o que não significa, necessariamente, vontade de morte.

A vontade está para o homicídio assim como a estética está para a arte. Estética é intenção de arte, embora seja possível arte sem intenção. Todavia, assim como a relação vontade de arte, a vontade de morte se dirige ao exercício de uma liberdade, conectada desde a filosofia e a teologia com o princípio da vontade, que independe do outro.

O pintor pode ou não se preocupar com a reação do espectador; o compositor pode ou não apresentar sua música a um público definido. Pintura e música possuem função social, embora pertençam, na origem, à vontade do artista.

Quando importa a reação do público (seja pessoal, seja comercial), há vontade de arte; mas não necessariamente há estética. Quando não importa a reação, se não há estética há inércia ou paixão. Inércia é ausência de vontade; paixão é vontade instintiva ou sensitiva. Inércia é ausência de dolo; paixão é exculpação.

O tema está diretamente ligado à teologia porque vontade representa realização consciente. Vontade de matar ou vontade de morte é elemento volitivo e consciencioso de agir contra vida humana.

Dolo no homicídio implica, necessariamente, o desejo de matar, e não só o desejo, como a plena consciência – refletida e meditada – de agir nesse propósito: matar.

Querer/desejar ou não querer/desejar matar está na razão íntima do acusado, e em nenhum outro lugar. O locus de racionalidade é bem definido, e a vontade de morte é, portanto, refletida – e não inerte ou passional.

Sendo assim, a vontade de morte (dolo) está evidenciada necessariamente pela apuração dos fatos, ou, de preferência, pela confissão do acusado. Qualquer elemento externo a esse “discurso originário” – testemunhos, filmagens, interpretações – escapam ao acesso da verdadeira intenção do acusado.

É interessante refletir – não agora; depois! – se, afinal, vontade de matar configura crime!? Eis uma problemática: qual a conexão entre vontade de matar e ato de matar? Vontade não é ação. Vontade é intenção de ação.

Enquanto o fato permanece no campo intencional, não há ação; logo, não há crime. Porém, há pecado! Há, potencialmente, sentimento de culpa.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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