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Da vulnerabilidade social de Zola à desumanização em Kafka

Da vulnerabilidade social de Zola à desumanização em Kafka

O presente texto é um resumo do artigo “Uma investigação na retórica: da vulnerabilidade social de Zola à desumanização de Kafka”, da autora Virginia Zambrano, o qual pode ser relacionado à realidade do sistema de justiça criminal brasileiro.

Relacionar o direito a literatura é salutar para aproximar a abstração do sistema normativo a realidade social. A ficção literária quebra a figura racional da legislação, dialoga com a ficção jurídica contida nos autos processuais e humaniza a frieza dos dogmas, dos formalismos, da burocracia, dos princípios e dos entendimentos jurisprudenciais.

De acordo com Zambrano (p. 248, 2015)[1] o direito, em sua aparente neutralidade e impessoalidade, busca oferecer uma resposta às exigências da ordem social, traçando linhas entre o justo e o injusto, entre o bem o mal, entre o lícito e o ilícito, entre algozes e  mártires.

Posto isso, para a autora, pela própria essência do sistema normativo, é necessário desconstruído através da literatura:

(…) A essa primeira desconstrução do direito se acrescenta a segunda, ainda mais radical, relativa não mais aos seus limites, mas à sua própria essência. O sistema normativo não consegue classificar em suas categorias a realidade humana que escapa da ordem preestabelecida (…) Chegamos ao ponto em que a justiça distributiva, que atribui a cada um a sua pena, transforma-se em vontade de impor o mal, tornando intercambiáveis culpado e vítima.

Esta é uma das temáticas abordadas por Kafka: não é a culpa que pressupõe a pena, mas é esta que determina àquela. Em outras palavras: o fato ilícito, antijurídico e culpado não é mais conditio sine qua non à sentença condenatória e a cominação da pena estipulada pela lei penal.

O procedimento processual penal tornou-se mero conjunto burocrático de ritos estipulados para, ao final, ratificar aquele que, ainda na fase inquisitorial, já fora sentenciado como culpado. Nesta senda, é possível ir além: o processo penal é autoritário e seletivo. Explico: as variantes de classe e raça são extremamente determinantes em uma condenação ou absolvição. As estatísticas[2] atestam o aqui afirmado: a miserável massa carcerária no Brasil é composta por pretos e pobres[3].

Desse modo, assim como Joseph K. luta, em vão, para entender o processo em que participava, em que não fora oportunizado conhecer o teor das acusações e defender-se delas, o indivíduo, de baixa escolaridade e totalmente alheio ao tecnicismo jurídico, se debate para compreender o discurso contido nos autos e para ter os seus direitos e garantias respeitados. Assim como, muitas vezes, o indivíduo já é estereotipado desde o momento de sua prisão como culpado, o personagem de Kafka já é sentenciado desde o momento em que é detido.

A condução arbitrária do processo de Joseph K. lembra muito a maneira como policiais, delegados, promotores, juízes e até as vítimas de crimes comportam-se durante a fase inquisitorial e de instrução: o acusado já é considerado culpado antes mesmo do final do procedimento, que serve apenas para legitimar a culpa pressuposta do indiciado. Pretos e pobres são penalizados pela sua condição social. Sobre a seletividade penal, cumpre citar Molina (2002, p. 134):

Os agentes de controle social informal tratam de condicionar o indivíduo, de discipliná-lo através de um largo e sutil processo […] Quando as instancias informais do controle social fracassam, entram em funcionamento as instâncias formais, que atuam de modo coercitivo e impõem sanções qualitativamente distintas das sanções sociais: são sanções estigmatizantes que atribuem ao infrator um singular status (de desviados, perigoso ou delinquente)

De acordo com Zambrano, a pena é pressuposta à culpa que deveria punir. Dialogando com o arcabouço jurídico brasileiro, é a mesma coisa de dizer que os princípios constitucionais processuais penais como o contraditório e a ampla defesa e a presunção de inocência são inócuos e que, desde o início do procedimento penal, alguns investigados ou acusados estão irremediavelmente sentenciados como culpados[4].

Assim, tanto Kafka como Zola, utilizam a narrativa literária para realizarem denúncia social e, para os operadores do direito, uma hipótese de interpretação da realidade normativa.

Na narrativa Kafkaniana, como reflexo da vida pessoal do escritor[5], existe uma fusão entre modernidade e burocracia, refletindo a intrínseca condição da vida moderna. Por outro lado, para Émile Zola, autor do romance Germinal, representante do naturalismo[6], descreve a realidade social em sua  crueza. O autor retrata a vulnerabilidade da classe trabalhadora do final século XIX perante a burguesia. A exploração levou a revolta, culminando nas barricadas de Paris de 1848. Segundo a autora:

A deterioração econômica e a miséria geram, inexoravelmente, alcoolismo, criminalidade, propensão à violência, devastação física e moral, revelando o quanto são fortes as desigualdades sociais.

Desse modo, a narrativa naturalista (uma espécie de realismo descritivo) conservava um rigor cientifico, semelhante a utilizada pelo cientista ao observar e descrever o objeto de estudo. São as palavras de CARVALHO (2011, p. 09) acerca da estética naturalista:

A estética naturalista focava o lado patológico dos indivíduos nas piores condições possíveis. O detalhamento cauteloso das cenas é verdadeiro retrato de aspectos negativos do homem em sociedade. A abertura ao sexo, à miséria e à degradação humana são temas recorrentes nas observações experimentais como se fossem análises de um laboratório social, da forma pela qual os escritores acreditavam fazer. O homem é apresentado como um animal degenerado pela linguagem objetiva, simplificada e comum, de fácil acesso e pela aproximação às pessoas, semelhantemente aos textos informativos. O homem é reduzido a praticamente uma máquina de reações mecânicas, determinadas pelo meio, pela hereditariedade e pelo momento histórico.

Por outro lado, Franz Kafka, e um dos mais notáveis representantes do realismo fantástico, estilo literário que utiliza a introdução de elementos “absurdos” dentro de situações cotidianas, muitas vezes utilizado para fazer alegorias e trazer reflexões sociais.

Neste diapasão, cumpre destacar as palavras de Volobuef (2000, p. 109):

Qualquer que seja seu pretexto ou contexto, a narrativa fantástica efetua uma reavaliação dos pressupostos da realidade, questionando sua natureza precípua e colocando em dúvida nossa capacidade de efetivamente captá-la através da percepção dos sentidos (…). Esse “realismo” do fantástico não implica, porém, em uma limitação ou pauperização de seu alcance na abordagem de problemas humanos. Antes, é a fonte de sua complexidade estética e de representação social.

Zambrano (2015) relaciona a técnica da narrativa fantástica, com a realidade do sistema de justiça, servindo de alegoria ao esgotamento do individuo perante os procedimentos burocráticos e ritos processuais:

No transcorrer da narrativa fantástica, estão presentes, portanto, muitos aspectos da realidade que parecem não ter se alterado no tempo:  a imprevisibilidade e a incontrolabilidade dos juízos; a in-confiabilidade dos magistrados, conformistas e preguiçosos; a ignorância verborreica dos advogados, que ainda gostam de se distinguir em “grandes” e “pequenos”, perdendo de vista aa dignidade da profissão; a dificuldade de conhecer os julgadores, graças aas modalidades de redação abreviada das sentenças; a impossibilidade de conhecer a lei e, portanto, de respeita-la; o difícil dialogo com o juiz, entre audiências desnecessárias, protocolos rituais, trocas de memoriais não lidos.

Desse modo, conforme destacado por Henriete Karam (2015), em ambos os autores, a maneira como decorreram, de forma diferente, ao recurso da zoomorfização[7] do humano para sintetizarem a desigualdade social e à desumanização do indivíduo.

Vejamos à zoomorfização em Germinal (ZOLA, págs. 10 e 203), ocasião em que o autor utiliza a técnica tanto para animalizar a mina como os trabalhadores:

Esta mina, apertada no fundo de um buraco, com suas construções de tijolo atarracadas, de onde sobressaía uma chaminé que mais parecia um chifre ameaçador, dava-lhe a impressão de um animal voraz e feroz, agachado à espreita para devorar o mundo. Examinando-a, pensava em si, na sua existência de vagabundo que havia oito dias procurava trabalho.

Tal excesso de miséria só servia para torná-los ainda mais obstinados, mudos, verdadeiros animais acuados, preferindo morrer no fundo da toca ao sair. De modo semelhante, no romance “A metamorfose” (KAFKA, 1997, p. 2):

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.

Ademais, tanto em A metamorfose quanto em O Processo, é possível depreender a degradação existencial e da dignidade humana, ainda que por agentes diferentes. No primeiro, a narrativa fantástica serve para ilustrar a desumanização existencial de um ser humano transfigurado em inseto.

A desumanização experimentada por Gregor Samsa serve de alegoria à desumanização dos presos, provisórios ou definitivos, quando egressos no sistema carcerário brasileiro, os quais convivem com: superlotação, insalubridade, degradação, violência, corrupção, descaso, organizações criminosas em um poder paralelo ao Estado, com a conivência deste. Presos são transformados em animais quando encarcerados.

Já no segundo, existe uma possibilidade de interpretação: a seletividade no processo penal acaba por desumanizar os acusados. Em O Processo, (KAFKA, 2008, págs. 84-85) a deterioração das relações humanas permite a perseguição e a exploração perpetradas pelo judiciário: a realização da justiça passa pela negação do indivíduo. Há um sentimento geral de descrença:

– Estas contradições são fáceis de resolver – disse o pintor. – Trata-se aqui de duas coisas diferentes, por um lado, o que a lei determina e, por outro, o que eu pessoalmente verifiquei: o senhor não deve confundi-las. Na lei… que para dizer a verdade eu não li… é estipulado que o inocente é absolvido, mas não diz que os juízes possam ser influenciados. Ora, verifiquei precisamente o contrário. Nunca ouvi falar de uma verdadeira absolvição, mas contaram-me numerosos jogos de influência (…) escutei uma multidão de processos nas suas fases importantes e acompanhei-os tanto quanto era possível assistir, mas sem ter conhecido uma única verdadeira absolvição, devo dizer.

– Então nem uma única absolvição – disse K., como se se dirigisse a si próprio e às suas esperanças. – Isso confirma a opinião que já tenho da justiça. Também deste lado, não há, portanto, nada a fazer. Um só carrasco poderia substituir todo o tribunal.

A autora aduz que, erros judiciários, condenações injustas, violências carcerárias, supressão de direitos e garantias, entre outros, reflete a dificuldade do sistema de justiça em renovar-se e ser efetivo. Na prática, é contraditório e perde sua essência em meio a formalismos e excesso de procedimentos burocráticos.

Segundo Capponi apud Zambrano (2013, p. 541), Joseph K., bancário de meia-idade, estereótipo do imigrante, entenderá, aos poucos, que ele se tornou parte do processo, que o processo se apoderou dele e o privou de qualquer dignidade. O processo é a perda da confiança, o abandono de toda e qualquer esperança. Gregor Sansa, caixeiro viajante de uma firma inflexível e autoritária, encarcerado em um sistema familiar e social moralista, perde a sua dignidade ao transfigurar-se em um odioso inseto. Samsa e K. se aproximam por, no início da narrativa, demonstrarem uma atitude de irresignação e inquietação. Por fim, se conformam com o seu destino: não há escapatória.

Kafka reforça o sentimento da justiça ser seletiva, inacessível e caçadora. O processo só pode ser concluído com uma condenação, pois a culpa é presumida. A lei é inócua e os juízes, promotores, serventuários são cúmplices. Os personagens do autor estão condenados a viverem angustiados, a jamais terem uma resposta, uma prestação jurisdicional satisfatória. Assim como os indivíduos não conseguem compreender a lei e seus mecanismos, o que acaba por restringir o seu direito à defesa e à sua autodeterminação dentro de uma relação processual.

Posto isso, a literatura serve para demonstrar que, a verdade jurídica não é absoluta e tampouco universal. A realidade social é infinitamente mais complexa e é necessário compreendê-la para renovar o senso de justiça, bem como vislumbrar uma realidade mais equânime entre as partes dentro da relação processual.


Nota: Na coluna da Comissão de Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais, apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática “Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as ‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão. O texto da vez, formulado pela colega Sâmara Augusta Bueno Santos, foi feito com base no texto “Uma investigação na retórica: da vulnerabilidade social de Zola à desumanização de Kafka”, de Virgínia Zambrano – publicado na Revista ANAMORPHOSIS (veja aqui). Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka – do Canal Ciências Criminais)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JORGE, Ruy Alves. Interpretação de Kafka. 1. ed. São Paulo: L.oren – Editora e Distribuidora de Livros, 1968.

KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre:  L&PM, 2008.

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

KARAM, Henriete. Figurações da degradação da dignidade humana em E. Zola e em F. Kafka. Niterói: Revista Culturas Jurídicas, v. 04, n. 07, jan-abr 2017.

MOLINA, Antônio García-Pablos de & GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4. ed. São Paulo: Editora revista dos tribunais, 2002.

VOLOBUEF, Karin. Uma leitura do fantástico: A invenção de Morel (A.B Casares) e O Processo (F. Kafka). Curitiba: Revista Letras, n. 53, jan-jun 2000.

ZAMBRANO, Virginia. Uma investigação retorica: da vulnerabilidade social de Zola a desumanização de Kafka. Tradução de Henriete Karam. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 01, n, 02, p. 247-265, jul. -dez 2015.

ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo-SP: Martin Claret, 2009.


NOTAS

[1] Virginia Zambrano Doutora pela Università degli Studi di Napoli “Federico II” (Itália). Professora de DireitoPrivado Comparado na Università di Salerno (Itália). Salerno, Itália. E-mail: vzambrano@unisa.it

[2] De acordo com o último relatório do Infopen – Departamento de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, do ano de 2016, a maioria dos presos (provisórios ou definitivos) possuíam as seguintes características: 64% são negros, 51% possuem ensino fundamental incompleto, 30% tem entre 18 e 24 anos, 47% têm pelo menos um filho. Em relação aos delitos praticados, entre os homens, 41% praticaram delitos contra o patrimônio e 26% por tráfico de drogas. Já entre as mulheres, 62% foram presas por tráfico de drogas contra 21% de prisões por crimes contra o patrimônio. Disponível aqui. Consulta em: 20/03/2019.

[3] O vocábulo aqui é utilizado no intuito de demonstrar a realidade como ela é. Sem termos rebuscados ou eufemismos. É indispensável rasgar a realidade social para poder analisá-la e alterá-la.

[4] O princípio de justiça adotado em A colônia penal, Franz Kafka, é aquele no qual a culpabilidade é sempre presumida e não pode ser questionada. Não há espaço para o contraditório e a ampla defesa. Assim como Joseph K., o sentenciado da obra é condenado e executado sem nem saber o teor das acusações que lhe são imputadas.

[5] Sobre a relação da vida pessoal de Kafka com sua obra, Ruy Alves Jorge (1968, p. 49) aduz: “Antes do pai, ele já e um réu de si mesmo, um prisioneiro sem esperança de tremores que estrangulam a sua vontade e a própria forca de viver que se dilui antes de atingir a plenitude. Ele vivera sempre como num sonho (…). Ainda que transfira as suas indecisões ao pai, que é um homem conhecido por seu caráter extremamente forte, ele não encontrara, por mais que busque, a desculpa para a sua incapacidade congênita de libertar-se.

[6] “A escola naturalista inicia-se na segunda metade do século XIX com a conjugação de fatores recorrentes do industrialismo, isto é, as contradições sociais e o desenvolvimento das ciências. (…) os escritores naturalistas buscavam retratar a realidade aprofundando-a em suas mazelas sociais como os vícios, as paixões, os sentimentos humanos mais torpes e animalescos, considerados baixos e sujos, sendo este um recorte social em termos gerais da vida burguesa e proletária”. (CARVALHO, 2011, p. 09).

[7] Zoomorfização ou animalização é uma figura de linguagem que aproxima e descreve o comportamento humano como de um animal, utilizada sobretudo na escola literária do naturalismo.


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