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A vulnerabilidade da vítima no crime do art. 217-A é relativa ou absoluta?

Nos dias atuais, a vítima vem ganhando destaque nesse “novo” direito penal da sociedade tecnológica. A vítima que antes possuía uma papel secundário; assessório, passou a ter mais relevância e protagonismo no que diz respeito ao fato criminoso. Assim, o que antes era uma relação apenas entre Estado e autor do fato, passou a ser uma relação inclusiva, na qual, a vítima é tutelada de forma ampla.

Esse novo modelo de justiça criminal, que privilegia a vítima do crime, dando suporte necessário para que a mesma possa superar as consequências do crime, passou a ser adotada no Brasil, especialmente, em algumas legislações criminais.

A lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) e a lei dos Juizados Especiais Criminais (lei 9.099/95) são exemplos desse novo modelo de justiça criminal, que se preocupa com a vítima e com as possíveis sequelas deixadas pelo crime.

Assim, o modelo clássico, que se preocupa, única e exclusivamente, com o direito de punir do Estado, vem sendo, paulatinamente, substituído, por um modelo  em que a vítima participa ativamente e com dignidade.

Partindo-se dessa premissa, iremos tratar nesse artigo a respeito da vulnerabilidade da vítima no crime de estupro de vulnerável. Essa vulnerabilidade da vítima deve ser tratada como absoluta ou relativa? A vulnerabilidade da vítima no estupro do artigo 217-A independe de experiência de vida e de questões fáticas?

Inicialmente, o estupro de vulnerável está inserido no título VI, capítulo II, artigo 217-A, do código penal, na parte, portanto, dos crimes que atentam contra a dignidade sexual.

O referido tipo penal tem por escopo tutelar a dignidade sexual, que é um bem jurídico de índole individual e de elevada importância.

A dignidade sexual guarda estrita relação com o princípio da dignidade da pessoa humana que, por sua vez, não é um princípio que incide apenas na seara criminal, mas sim um fundamento que serve de norte para a aplicação do direito como um todo.

Valendo ressaltar ainda que, no direito penal, o fundamento da dignidade da pessoa humana, funciona como uma limitação ao direito de punir do Estado.

Nessa esteira, é correto afirmar que o tipo penal do estupro de vulnerável, assim como o do estupro, do artigo 213, do código penal, é um tipo misto alternativo, pois prevê que prática de quaisquer das condutas previstas no núcleo do tipo penal configura o delito.

Assim, é correto afirmar que, tanto a prática da conjunção carnal, quanto a prática de qualquer outro ato libidinoso distinto da conjunção carnal, configura o crime em questão.

Desse modo, não importa se não houve a conjunção carnal propriamente dita para que o crime seja considerado consumado, o que se exige é a prática de quaisquer das condutas previstas no tipo penal, de forma isolada ou cumulada.

Expliquemos, o fato de ter ou não ocorrido a conjunção carnal, propriamente dita, não é fator preponderante para que o crime seja considerado consumado, pois havendo qualquer outro ato sexual distinto da conjunção carnal, desde que seja considerado libidinoso, configuraria o crime de estupro de vulnerável.

Ademais, não iremos adentrar no mérito em relação ao que pode ou não ser considerado “ato libidinoso” para fins do estupro e do estupro de vulnerável, já que o intuito do escrito não é este.

Assim, é importante frisar que, diferentemente do que ocorre com o estupro (213, CP), no estupro de vulnerável (217-A, CP), a violência ou a grave ameaça são prescindíveis para a configuração do crime em questão.

Nesse esteira, surge a seguinte indagação: Quem é que pode ser considerado como vulnerável para fins de enquadramento no tipo legal ?

Estupro de vulnerável              
Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.           
§1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Assim, vulnerável é o menor de 14 anos e todo aquele que não pode oferecer resistência. Nota-se que o legislador elencou os que se enquadram no conceito de vulnerabilidade em dois grupos distintos, quais sejam, os menores de 14 anos e os que não podem oferecer resistência (seja por qual motivo for).

O menor de 14 anos apesar de ter discernimento em relação a conduta que pratica, ou seja, apesar de conseguir discernir o que é certo do que é errado, o direito penal achou por bem, considerar toda e qualquer manifestação de vontade do menor de 14 anos, para a prática do ato sexual, como inválida

Por sua vez, o enfermo e o doente mental, assim como qualquer outro, que por qualquer motivo, seja ele temporário ou duradouro, não consiga expressar a sua vontade, e em razão disso, não consiga oferecer resistência, são considerados vulneráveis. E sendo assim, não podem consentir na prática do ato sexual.

Assim, não há dúvidas de que estes, de fato, se encontram em situação de vulnerabilidade, já que por razões de sanidade mental ou qualquer outro meio que impossibilite a resistência, não são capazes de emitir uma manifestação de vontade válida.

Só a título de observação, sabe-se que existem diferentes tipos e níveis de doenças mentais, e que a depender do grau ou do momento da prática do ato sexual, pode ser que o “vulnerável” tenha o discernimento necessário para saber o que está fazendo. Assim, para que se caracterize um doente mental como vulnerável, é necessário avaliar se, no momento, da prática do ato sexual, este tinha o discernimento suficiente acerca do que estava fazendo .

Assim, para os indivíduos já mencionados, a vulnerabilidade é absoluta, ou seja, são presumidamente vulneráveis, e assim sendo, quem praticar qualquer ato sexual com eles, incorrerá em estupro de vulnerável, independentemente da manifestação de vontade do vulnerável.

Já em relação ao menor de 14 anos, apesar da doutrina e jurisprudência majoritárias entenderem que a vulnerabilidade do menor é de caráter absoluto, a situação é mais complexa do aparenta.

Discute-se muito na doutrina a respeito da validade da manifestação de vontade desse menor. O menor de 14 anos deveria ter vontade valida ou ainda não possui o discernimento necessário para tal? O fato dele já ter experiência sexual atenuaria o crime praticado?

Sustentamos que quem realiza a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso distinto da conjunção carnal com menor de 14 anos, só incorre em crime caso a relação sexual se dê sem o consentimento do “menor”, devendo, portanto, o acusado ser enquadrado no delito de estupro, do artigo 213 do código penal, uma vez que, diferentemente do que ocorre com os vulneráveis em razão de doença mental ou qualquer outro fator que impossibilite a resistência (tal como uma embriaguez completa), o menor de 14 anos, tem sanidade mental para consentir ou não na prática do ato sexual.

Badaró (2003) alerta no sentido de que o legislador, ao criar a figura típica do estupro de vulnerável, estabeleceu uma proibição genérica para a prática de relação sexual com menores de 14 anos. Assim, pouco importa se houve ou não o consentimento da vítima para que o crime seja caracterizado.

[...] Partimos do seguinte ponto básico: o legislador, na área penal, continua retrógrado e incapaz de acompanhar as mudanças de comportamento reais na sociedade brasileira, inclusive no campo da definição de criança ou adolescente. Perdemos uma oportunidade ímpar para equiparar os conceitos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, criança é a pessoa menor de 12 anos; adolescente, quem é maior de 12 anos. Logo, a idade de 14 anos deveria ser eliminada desse cenário. A tutela do direito penal, no campo dos crimes sexuais, deve ser absoluta, quando se tratar de criança (menor de 12 anos), mas relativa ao cuidar do adolescente (maior de 12 anos). É o que demanda a lógica do sistema legislativo, se analisado em conjunto. Desse modo, continuamos a sustentar ser viável debater a capacidade de consentimento de quem possua 12 ou 13 anos, no contexto do estupro de vulnerável[...] (NUCCI, 2015, p. 1151)

De fato, os tempos mudaram e um adolescente com 12 ou 13 anos não é mesmo de tempos atrás. Assim, não é correto e nem justo que o adolescente da sociedade atual não possa consentir, de forma válida, para a prática de um ato sexual, o que viola sua liberdade sexual.

Ademais, o fato do mesmo já ter tido experiências anteriores deve ser levado em consideração para que o crime seja configurado, pois não faz sentido presumir uma situação de vulnerabilidade que na vida real inexiste.

Por fim, corroboramos, no sentido de que a vulnerabilidade do menor de 14 anos, no crime de estupro de vulnerável, é relativa, pois a depender do caso concreto, o menor de 14 anos possui o discernimento suficiente e necessário para a prática do ato, e sendo assim, rotular essa pessoa como vulnerável independentemente das circunstâncias que cercam o casso concreto é algo desarrazoado levando-se em conta a nossa sociedade atual.

Assim, como defende o doutrinador Nucci, a tutela penal deveria incidir para proteger a criança, menor de 12 anos, que ainda não possui maturidade, e nem discernimento suficiente para a prática de qualquer ato de cunho sexual.


REFERÊNCIAS     

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado.Rio de Janeiro: Forense, 2015.

Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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