WhatsApp: quem tem o poder tende a abusar dele
Por Ruchester Marreiros Barbosa
A repercussão do bloqueio do WhatsApp se tornou, mais uma vez, um episódio no qual o judiciário protagoniza o papel de ‘patinho feio da história’ ao exercer uma das mais importantes e marcantes características de uma instituição democrática, notadamente a função contramajoritária para de direitos e garantias fundamentais, servindo de freios à denominada “maioria democrática”, pois democracia não significa vontade da maioria.
Maioria e majoritário são coisas diferentes em um regime democrático. Vontade majoritária, em uma democracia, é o grito pelo freio ao poder tirânico, de instituições ilegítimas, nativamente arbitrárias.
É a construção da vontade majoritária que decidiu e escolheu, em 1988, as regras do jogo e em definitivo petrificadas na Constituição. Esta, muito mais que uma carta de intenções, representa a legitimação de um poder majoritário, justamente para que esta liberdade, que inclui o funcionamento das instituições democraticamente constituídas, justamente para que não sejam golpeadas pela vontade de uma maioria, ainda que bem intencionada, mas comprometedora das liberdades, da vontade majoritária, que agora, composta por uma minoria no interesse pela manutenção do que foi conquistado.
A união de uma coletividade de pessoas não significa que estejam legitimadas por uma razão majoritária. Haverá aqueles que irão dizer que tudo isso não passa de um “enunciado performático”, parafraseando Lênio, e outros complementarão, que não existiria um direito à segurança em abstrato de proteção à sociedade, pois a ponderação situa-se entre a decisão de conciliar princípios concretamente considerados, portanto, fatos, como a vida da gestante e a vida intrauterina de um feto anencéfalo em desenvolvimento; entre a vida de uma criança e a decisão paterna de não permitir uma transfusão de sangue; entre a privacidade de uma comunicação telefônica e a descoberta do paradeiro de uma vítima de sequestro.
Até mesmo John Rawls, revolucionário do pensamento liberal deixou o legado de que na justiça como equidade, o conceito do certo vem antes do bom, devendo-se considerar todo o arcabouço da sociedade ao se formular um sistema de justiça.
Em tempos de sociedade de risco, consoante a visão de Ulrich Beck, nos deparamos com interesses as vezes contrapostos entre a cyber segurança agregada de valores econômicos e a segurança da sociedade como valor da vida em uma harmonia digna, na qual, nossa Constituição, majoritariamente escolheu, por exemplo, criminalizar determinadas condutas, como as elencadas no art. 5º, XLIII, CR.
É nesta direção, que também o judiciário é obrigado a trafegar, ainda que contracorrente do poder econômico representado pelo interesse de uma maioria de 100.000 milhões de pessoas usuárias do aplicativo whatsapp, que se tornaram reféns “do-microcosmo-do-Estado-de-Direito-em-que-se-alojou-o-capitalismo”, como disse Rui Cunha Martins na obra A hora dos cadáveres adiados, corrupção, expectativa e processo penal.
A questão é política e anterior ao Direito como exercício do poder que bloqueou uma ferramenta, antes, mais utilitária do que fundamental. Se alguém se viciar especificamente em uma marca de cigarro isto passa a ser uma fundamental ou últil ao bem-estar desta pessoa?
A questão foi a ausência do Estado! Ainda temos um?
Neste vácuo do Estado o poder econômico esbulhou espaço de poder, e de organismo ou organização que sobrevive (deveria) conforme as normas do Estado, passa a tecer as regras com que o Estado deva se portar, em especial, diante da necessidade da intervenção deste, inclusive com imposição de cultura linguística alheia (resposta à ordem judicial brasileira em inglês), expressão máxima de um colonialismo de mercado, sobrepujando-se ao majoritário, porque deixou refém uma coletividade de usuários, que, agora, formam uma maioria.
A investigação é um ato do Estado, não podemos negar, e o artigo 5º da constituição também ampara garantias conquistadas pelo poder econômico e a utilidade do bem individual, e é em favor deste bem que se deve tutelar, claro.
Porém, quando o interesse individual, ainda que seja de 100.000 de individualidades se sobrepõe à possibilidade de se cumprir um mandamento, também majoritário de criminalizar condutas concretamente verificáveis a ponderação que se realiza é exatamente entre fatos, como bem deixou possível Robert Alexy em sua Teoria dos Direitos Fundamentais (2015) e da Teoria Discursiva do Direito (2014).
Prevalecerá o poder econômico de um grupo econômico que age no interesse de uma maioria, seus acionistas, que deixaram refém uma outra maioria, que em conjunto, unidos, não possuem mais controle? Como dizia Montesquieu (2000, p. 166 e 167), quem tem o poder tende a abusar dele:
“mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem, diria! Até a virtude precisa de limites. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Trad. Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. 2ª Ed. 4ª tir. São Paulo: Malheiros
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de. O Espírito das Leis. trad. Cristina Muracho, 2ª ed., 2ª tir. 2000, São Paulo: Martins Fontes, 1996, Livro primeiro, capítulo IV.