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WhatsFake, print e prova no processo penal

WhatsFake, print e prova no processo penal

Por Rodrigo Oliveira de Camargo e Anna Júlia da Rosa Schuh

A rede mundial dos computadores oferece uma série de tecnologias para criar conversas em aplicativos de mensagens instantâneas que jamais ocorreram. O WhatsFake, aplicativo brasileiro que imita o WhatsApp, foi projetado com a finalidade de inventar conversas falsas e gerar prints que podem ser capturados e utilizados para justificar situações desagradáveis.

Com o aplicativo, após fazer seu download, qualquer pessoa pode criar uma conversa no WhatsApp que jamais tenha ocorrido, podendo atribuí-las a dois usuários com nomes e fotos diferentes: com isso, uma pessoa pode mandar mensagem e responder como se fossem duas pessoas, tirar um print da tela para salvar a conversa e mandar para quem quiser como se fosse verdadeira. É possível, inclusive, adicionar emojis, informar o status do usuário como “online” ou “offline“, definir o alerta “digitando” e também configurar as opções de “visto por último”.

A possibilidade cria um problema na utilização desse tipo de informação como prova em processos judiciais, sobretudo no processo penal, onde estão em jogo expressivos direitos fundamentais, como é o caso da liberdade. As linhas que seguem buscam, de forma muito breve e sem a pretensão de esgotar a discussão, introduzir a problemática no âmbito das ciências criminais para desenvolver a pesquisa e a busca de soluções para a questão que pode se tornar bastante tormentosa nos próximos anos.

As pesquisas sobre investigação tecnológica e prova digital ainda estão engatinhando – e lentamente – no Brasil. O quase octogenário Código de Processo Penal não orienta e tampouco estabelece limites válidos à utilização de elementos informáticos produzidos pelos avanços tecnológicos, além de carecer de leis complementares ou leis orgânicas que atentem a essa nem tão nova realidade.

No Brasil, regulamentações relacionadas ao manuseio da Internet, de novas tecnologias e até mesmo de simples obtenção de elementos de investigação ou de provas obtidos por intermédio de computadores são ilustres desconhecidos do diploma processual penal e de leis processuais penais extravagantes: o Código de Processo Penal sequer tratou de reconhecer o produto da utilização dessas novas tecnologias como espécie de prova e, como meio de prova, sua regulamentação encontra-se insuficientemente limitada às previsões da Lei 12.850/2013, que muito pouco enfrentam a verdadeira complexidade da problemática.

A Lei 13.964/2019, que promoveu robustas reformas no processo penal, introduziu o conceito de cadeia de custódia, mas perdeu a oportunidade de trabalhar as questões atinentes à custódia das provas tecnológicas.

No que guarda relação com a cadeia de custódia de registros informáticos, é extremamente importante ter presente que a preservação das fontes é verdadeira condição de sua validade, ganhando especial destaque quando estamos tratando de provas obtidas por meios eletrônicos, já que dados obtidos dessa maneira podem livremente ser manipulados via acesso remoto por qualquer uma das partes, ainda que os dispositivos em que estejam armazenados não permaneçam fisicamente a sua disposição.

Os cuidados com a cadeia de custódia são essenciais para evitar que ocorram alteração das fontes, contaminando os meios e causando danos à higidez dos elementos obtidos e colocados à disposição da investigação preliminar ou do processo. É, portanto, um dos fatores que assegura a autenticidade do elemento e segurança à própria administração da justiça, eis que o submete a um procedimento regulado e documentado de detecção, coleta, embalagem e guarda.

Assim, surge o nosso problema: como garantir a integridade de mensagens obtidas através de aplicações de mensagens instantâneas? A printagem da tela de conversas entre dois interlocutores deve ser reconhecida como prova válida em processos judiciais?

A doutrina estrangeira estabelece que, havendo impugnação do conteúdo de provas digitais indicadas por alguma das partes, cabe ao juiz se preocupar em valorar a prova eletrônica em conformidade com as regras do regime probatório, observando a seriedade das alegações que fundamentam a impugnação sobre as condições de autenticidade ou de exatidão da informação levando em consideração:

  • a existência de fundadas razões da concretude do conteúdo da impugnação e que não a tornam em uma mera impugnação sem qualquer respaldo e;
  • a diligência da parte impugnante na proposição de outros meios probatórios que possam afastar a integridade e/ou autenticidade da prova digital, a qual deve ser avaliada em conformidade com a postura processual da parte que propôs aquela prova.  

Neste contexto insere-se a prova produzida pela extração de dados do WhatsApp e de outros aplicativos de mensagens instantâneas. Tais conteúdos, cada vez mais, são introduzidos no processo penal para que sejam utilizados como prova, através de um ou vários meios: aporte do smartphone, transcrição por atas notariais ou testemunhos sobre o conteúdo de determinadas conversas.

Nesses aplicativos, a informação transmitida não é conservada por um servidor externo, mas tão somente junto aos dispositivos eletrônicos dos comunicantes. Ao administrador da aplicação cabe apenas proporcionar o trânsito das informações entre os comunicantes, valendo-se de protocolos de segurança para garantir a criptografia da comunicação entre os usuários.

Na prática, isso cria uma série de riscos relativos à manipulação ou sobreposição de dados. Além de remetente/receptores poderem apagar as conversas de seus aparelhos – ainda que exames periciais possam recuperá-las – como se vê pela existência do app WhatsFake, também é possível que haja a suplantação de identidade através do uso de sistemas informáticos especializados, em que terceiros enviam ou criam mensagens fazendo-se passar por um ou os dois interlocutores.

Mesmo no âmbito digital, não se pode admitir, em nome de uma maior eficácia processual na coleta de elementos para a construção de uma verdade, o arrefecimento de tutelas jurisdicionais para a obtenção da prova.

Os novos modelos legislativos construídos a partir da intervenção do fenômeno da tecnologia no Direito têm se demonstrado capazes de relativizar e até mesmo suprimir a observância das garantias constitucionais que regem a intervenção do Estado a partir da suspeita ou cometimento de atividades ilícitas no mundo digital, sobretudo se consideradas as aparentes incapacidades de ação e prevenção do poder público para a repressão dessas condutas. Isso jamais pode servir como elemento fundante de retorno às práticas autoritárias que eram desenvolvidas antes das conquistas democráticas consagradas nas constituições modernas.

Não à toa, o Tribunal Supremo Espanhol estabeleceu, conforme Resolução n.º 300/2015, que a abordagem da prova de comunicações bidirecionais, produzidas por qualquer aplicativo de mensagens instantâneas, deve ser realizada com extrema cautela. Para a Corte, é real a possibilidade de manipulação de arquivos digitais produzidos por esse tipo de aplicações, o que torna a questão ainda mais sensível se levados em consideração o aparente anonimato e a livre criação de contas de usuários/perfis que tais sistemas possibilitam.

Na mesma esteira, a Corte, nos autos da sentença penal n.º 754/2015, reconhece riscos de manipulações da prova digital das mais variadas formas, o que demanda dos órgãos jurisdicionais extrema cautela na análise desse tipo de elemento, recomendando uma série de precauções diante da verdadeira possibilidade de ocorrência de fraudes

O judiciário brasileiro jamais enfrentou a questão a fundo. No plano legislativo, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, então vinculada ao Ministério da Justiça, publicou no ano de 2014 a Portaria n.º 82, estabelecendo diretrizes sobre os procedimentos a serem observados no tocante à cadeia de custódia de vestígios exclusivamente materiais, omitindo-se quanto a cadeia de custódia dos vestígios no formato digital, o que deixa uma lacuna interpretativa que, como de costume, será facilmente suplantada pela surrada presunção de legitimidade de atos produzidos por agentes públicos, marca registrada do nosso modelo autoritário de processo penal. 

Portanto, a não ser que ao processo aporte o próprio dispositivo eletrônico, não há como assegurar a integridade de mensagens instantâneas trocadas por aplicativos que utilizam de tecnologia telemática, não sendo a printagem da tela de conversas entre dois interlocutores válida como prova irrefutável em processos judiciais.

São evidentes os riscos de manipulação ou inserção de informações nesses tipos de conversas, razão pela qual o órgão jurisdicional, além de acercar-se de todas as cautelas necessárias para a análise desse elemento, deve tomar posição a partir da observância de todo o conjunto probatório que pode avalizar ou não o conteúdo disposto nas mensagens trocadas.

No caso específico de mídias e arquivos digitais – como o conteúdo de uma conversa de WhatsApp –, é urgente que as instâncias responsáveis pela persecução penal se aproximem de recursos que assegurem que a evidência não foi modificada, o que somente seria possível a partir da validação da prova a partir de uma perícia realizada no aparelho celular e da comparação do código hash calculado no momento da identificação inicial da evidência com o código hash da evidência no momento de sua verificação.


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