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Whiskey in the Jar: quando foras da lei viram heróis lendários

Whiskey in the Jar: quando foras da lei viram heróis lendários

Nesse primeiro ano de escritos no Canal, (sim, já faz um ano!) muitos textos envolvendo sociologia do direito penal, criminologia além de nossa coluna Crime, Arte e Literatura, onde discutimos a visão da arte e da vida, do direito penal e da cultura, foram escritos com muito esmero e vontade.

Para esse início de segundo ano de escritos aqui nesse espaço de estudos, reflexão e conhecimento que é o Canal Ciências Criminais, pensei em algo diferente, mas que nos remete à história de quando foras da lei viram heróis lendários.

Esses contos, muitas vezes, acompanham o desenvolver da história e ficam registrados na tradição de comunidades, povos e até mesmo, incorporados pela religião predominante.

Devo começar com uma lenda que todos já devem ter ouvido sendo cantada por bandas de sucesso como Metallica e Thin Lizzy: Whiskey in the Jar.

Sim, o rock n´roll é uma das minhas grandes paixões e muitas de suas letras de músicas contribuíram a pesquisar histórias que estão lá aguardando mais algum novo aventureiro a desvendar suas lendas e segredos.

Porém, Whiskey in the Jar vai muito além de uma simples canção do rock. O grupo irlandês Thin Lizzy foi uma das primeiras bandas a interpretar a aventura de um saqueador que, ao avistar um capitão da guarda de nome Farrel guardando o soldo de seu trabalho, resolveu assaltá-lo e levar todo o dinheiro.

Como toda lenda que se preze, origens e datas exatas são desconhecidas, todavia, trechos da canção irlandesa remetem à aventura de Patrick Fleming, um conhecido salteador irlandês que fora executado em 1650.

Entretanto, Alan Lomax, em seu livro escrito em 1960, intitulado “As canções populares da América do Norte” remete a canção em estudo ao século XVII, mais precisamente, na Irlanda.

O fato de uma canção sobre um salteador ou ladrão das estradas ser cantada aos quatro cantos como uma lenda valorizada é o que torna nossa pesquisa interessante, pois o que há de honrado em enaltecer um conhecido bandido?

A resposta somente pode ser fundamentada com uma outra pergunta: Quem define quem é bandido?

Por certo, atos criminosos, e aqui trataremos o crime como ato desviante, são amparados na interpretação do que seja um ato de desvio.

Retirar pertence da posse de outro usando a força ou grave ameaça, ou mesmo, subtraindo-lhe algum objeto de sua retenção sem que o saiba, são atos desviantes e registrados como crime.

No entanto, quanto à lenda em questão, baseia-se no heroísmo concedido ao personagem pelos seus compatriotas ou iguais, que o intitulam protetor de suas vontades, atos enaltecidos por via dos desvios, e porque não também; de seu orgulho.

O protagonista de Whiskey in the Jar é irlandês, do século XVII, quando seu país se encontrava sobre o julgo da coroa britânica, mais precisamente, tendo seus cidadãos “proteção” dos feudos e burgos pertencentes aos nobres ingleses.

Dentro da sua própria ilha, cercado por estrangeiros estabelecidos e ainda, donos da acumulação do capital e da mão de obra barata (ou escrava) irlandesa, que possuía tantos direitos quanto um cão, qualquer ato contra os ingleses em sua terra seria considerado verdadeira honraria.

Dessa forma, é possível definir os estabelecidos ingleses e os outsiders irlandeses cada qual em sua cotidianidade e em seus grupos que realizam uma forçada convivência de desprezo mutuo, resiliência e um ódio crescente por parte dos conquistados contra os invasores.

Qualquer ato contra o inglês, por consequência desses sentimentos, seja cometido por um bárbaro sanguinário ou melhor ainda; um ladrão irlandês, será então considerado um ato de bravura e uma maneira de ir à desforra contra seus agressores.

Dessa forma, o grupo estabelecido (formado de lordes ingleses) convive com o medo ou receio fundamentado em anos de ocupação forçada sendo o verdadeiro inimigo a ser combatido, ainda que tal combate ocorra nas sombras.

Nesse sentido, a história nos traz personagens como William Wallace, da Escócia, conhecido pelos ingleses como o saqueador de feudos e castelos, quando de fato, após inúmeros atos contra a coroa inglesa, transformou-se no salvador e protetor de uma Escócia que passava a se unir pela força de seus guerreiros, que antes carregavam apenas o epiteto de simples saqueadores.

A lenda de Robin Longstride, ou Robin dos Bosques, para nós, Robin Hood, é proveniente da Inglaterra do século XIII, onde o povo vivia sob o julgo de altos impostos devido à coroa, que não se contentava com pouco uma vez que a grande soma de dinheiro remetida às guerras de Ricardo Coração de Leão extrapolava drasticamente as economias do país.

Com o reinado de seu irmão, João “Sem Terra”, surge o lendário protetor dos desprezados, roubando dos ricos ingleses e restituindo um pouco de dignidade aos pobres ingleses. Aqui, nota-se a mesma pátria, mas o sentido é diferente pois quem domina drástica e violentamente são os mais ricos contra o povo mais pobre.

Igualmente, na Serra Talhada, em Pernambuco (1898-1938) vivia, ou se escondia Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião e seus 50 homens.

O rei do cangaço teve sua lenda desenhada a partir do estado de violência em que se encontrava a região do Nordeste brasileiro, com a tomada de boa parte das terras pelos grandes fazendeiros e criadores de gado da região, que desocupavam famílias de suas simples posses com o intuito de transformar a terra em pastagens.

Em meio a essa animosidade, surge a lenda que irá roubar, matar, saquear, queimar e arrasar alguns ricos fazendeiros e entregar aos pobres seus tesouros.

Lampião, assim como o Hood, também ficou conhecido por sua índole que contrariava o sistema vigente dos estabelecidos (à força) fazendeiros, agindo assim contra eles em prol de famílias que lutavam pelo sustento.

Assassino, ladrão e saqueador, a lenda do homem é forjada não por seus atos, mas contra quem seus atos ocorreram. Tais atitudes desviantes aconteceram contra o grupo estabelecido que se apropriava dos pequenos e minorias que eram vistas como outsiders ou desviantes (Becker), pela maioria.

Pode-se citar também, por seus inúmeros atos contra a maioria estabelecida e que se utiliza de uma classe menos favorecida para conseguir seus intuitos, os ataques do Garoto Billy, ou Billy The Kid.

Sua lenda cresceu entre os jovens norte-americanos, mas o que fez  Billy foi ganhar fama como assassino e pistoleiro. Após seu patrão ter sido morto, o jovem em busca de vingança não conseguiu mais paz, tendo seu fim pelas armas de Pet Garret, xerife local.

O que Billy traz em sua história mais famosa foi a luta contra a lei e ordem da época, travando batalhas épicas contra números superiores de soldados, que o transformaram em lenda.

O que não se conta em sua história, é sua participação na Guerra do Condado de Lincoln, onde assassinatos ocorreram contra os presos de guerra e famílias inúmeras. Billy conviveu com essas atrocidades aos seus 18 anos de idade, e ao ser preso, trocaria sua delação pela anistia.

Na época (1878), a guerra de Lincoln, travada entre comerciantes e fazendeiros, ficou conhecida pelos massacres ocorridos de ambos os lados, geralmente contra pequenos agricultores, onde o garoto Billy serviu de testemunha contra tais atrocidades, sendo na época reconhecido como o protetor dos oprimidos.

Assim, nota-se que as lendas de salteadores e ladrões, como o personagem de Whiskey in the Jar, são muito comuns.

De fato, o ataque contra os inimigos da maioria, que é na verdade a minoria, uma vez que os ingleses controlavam a região sendo eles o grupo estabelecido naquela região, remonta à vingança e a guerra contra um inimigo muito próximo.

A mesma canção fora utilizada de maneira diferente nos EUA na época de sua Guerra Civil, quando a palavra Red Coast (Costa Vermelha ou Casaco Vermelho) foi utilizada em tom pejorativo contra os soldados ingleses e engendrada na tradicional musica irlandesa.

Assim nota-se que quando o mal é realizado contra os inimigos do grupo aflito e pisoteado, esses aplaudem, bajulam e criam canções e lendas, como as descritas.

Por infelicidade, o personagem de Whiskey in the Jar, cantado por grandes nomes da música como The Dubliners, Metallica e Thin Lizzy (esse último irlandês como a lenda original do século XVII), não esperava ser traído por sua amada Molly, sendo surpreendido em uma emboscada na qual se encontrara obrigado a matar o capitão da guarda chamado Farrel.

Após muita fuga, o lendário saqueador de Whiskey in the Jar, assassino do capitão inglês que fazia parte do grupo dominante e não carismático, é preso e morto. Após sua morte nasce a lenda do saqueador que roubava e matava ingleses, em nome do povo sofrido e escravizado da Irlanda.

Nietzsche mais uma vez ponderou certo e sua máxima cabe aqui como uma luva:

O inimigo do meu inimigo é meu amigo.


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Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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