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Quando a arte imita a vida e nos faz crer que a vida é um conto: o Faroeste Caboclo (Parte 1)

Por Thiago M. Minagé e Alberto S. Júnior

Em meio a transição do antigo modelo ditatorial para o nosso atual Estado Democrático de Direito, em 1987, a extinta banda Legião Urbana lançava o álbum “Que País É Este 1978/1987”, elencando, dentre outros sucessos, a música “Faroeste Caboclo”, composta por Renato Russo (1960-1996) no fim da Década de 70, que retrata a trajetória de João de Santo Cristo (JSC), um jovem repleto de sonhos e expectativas, mas que, desde criança, sob a influência de um ódio providencial, pensava em ser bandido, “ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu” — eis alguns dos versos onde repousam algumas de nossas interrogações: afinal, quem criou João de Santo Cristo? Não obstante a complexidade de uma possível resposta, não pretendemos elucidar o sentido dos referidos versos, não. Nossa intenção, aliás, ante a coincidência entre o momento histórico da promulgação da nossa atual Carta Política e o momento do lançamento do single da música em questão (1988), propomos um sucinto diálogo acerca da similitude que há entre as violações sofridas pelo fictício João de Santo Cristo e as ainda experimenta pelos milhares de “joões-de-santo-cristo” da vida real.

Antes de continuarmos, é interessante observar que a música pode servir como um excelente veículo para a compreensão do cotidiano sócio-político de uma determinada sociedade em um dado momento histórico, por meio das vozes de inúmeros movimentos musicais, a exemplo do seguimento que identificamos como MPB, tendo como grande expoente “Julinho da Adelaide”, pseudônimo adotado pelo cantor e compositor Chico Buarque de Holanda durante os “anos de chumbo”, devido as repressões promovidas pelos antigos regimes militares — Roda Viva!

Pois bem.

“(…) Não tinha medo tal João de Santo Cristo
Era o que todos diziam quando ele se perdeu
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu
Quando criança só pensava em ser bandido
Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu (..).”

Conforme dito acima, a música pode revelar peculiaridades do momento sócio-político de uma determinada sociedade. No que se refere ao “Faroeste Caboclo”, nosso ponto de partida é 1979, ano em que Renato Russo a compôs. A fim de melhor revolver o chão linguístico em que está inserido o aludido autor, faz-se necessário uma compreensão de alguns marcos da Década de 70.

Nesse momento o governo e o povo têm como “salvação” o combate às drogas, a tolerância zero, fruto da importação do método norte americano que atualmente demonstra-se falido, criminoso e preconceituoso. Afinal de contas, só perde quem tem algo a perder, o que um favelado, pobre, órfão, sem teto e sem futuro tem a perder? Quais os seus anseios como pessoa inserida na sociedade? Afinal, ele está na sociedade? Tem sonhos? Talvez a chave para a elucidação das nossas indagações esteja não naquilo que João de Santo Cristo é, e sim naquilo que ele deixou de ser.

É preciso ter em mente que, na favela, onde o Estado se ausenta, onde tudo falta, quem tem algo, vira referência, o poder seduz. Quem tem o poder na favela? Quem dita as regras na favela? Na verdade o poder (ahhh o maldito poder) seduz e transforma as pessoas em qualquer escala, sem distinção.

Falando em poder, o Estado, representação mais perceptível do Poder, quando entra na favela, não é para dar bom dia, e sim para dar tiro, e nunca tem uma bala perdida — na verdade, ela tem endereço certo. E há quem interessa o “endereço certo” da coerção estatal? Provavelmente, caso o caro leitor tenha se desprendido do mundo televisionado, que fomenta as falácias da defesa social e os jargões do tipo “direitos-humanos-para-humanos-direitos”, a resposta não seja mais tão simplória.

Os inúmeros discursos envoltos ao tema Segurança Pública legitimam as mais variadas formas de violações a direitos fundamentais, refletindo uma espécie de política onde se busca a manutenção do status quo social, ou seja, a manutenção de cada um no seu quadrado — e quem define o quadrado de cada um? Mais uma vez nos deparamos com as relações de poder. A propósito, em que pese as variações semânticas do referido vocábulo, poderíamos citar aquilo que Nietzsche denomina como “vontade de potência”, a fim de demonstrar que a expansão do “poder” também é algo intrínseco à natureza humana, demonstrando que o mundo é formado por um constante choque entre forças ativas e forças reativas. Cuidado: esse “choque” entre forças nada tem a ver com a maniqueísta guerra entre bem e mal. Até porque, quem estará do lado mal? lógico que sempre será o outro. Pense conosco: pobre, favelado, órfão e ainda presencia o pai morrer pelas mãos do estado. Difícil imaginar algo diferente desse ser que só experimentou o que a vida tem de cruel.

João de Santo Cristo é força ativa, assim como muitos outros joões, que deseja se expandir e estabelecer o seu lugar no mundo, ou melhor, o seu quadrado do mundo. Porém, qualquer ascensão (institucionalizada) sócio-geométrica (ampliação do ‘quadrado’) oriunda das zonas periféricas é prontamente obstaculizada pelas forças que detêm seus ‘quadrados’ amplamente definidos. E é justamente essa colisão de interesses que legitima as inúmeras barbáries promovidas pelo ‘Poder’.

Por ora, concluímos que esse é o objetivo de um estudante: ascensão, seja intelectual, social ou profissional. Mas aquele que nada tem a perder, melhor, nada tem a querer, se estabelece como pode, conforme está ao seu alcance. Portanto, antes de reproduzir os “clichês bolsonarianos”, não se coloque como parâmetro, uma vez que sua vida e sua ascensão não serve, pois você, certamente ocupante de um ‘quadrado’ digno, não experimentou 1/3 do que os “joões-de-santo-cristo” experimentam. Mas assim é a vida: imposta e exposta pelo estado; criando monstros e depois caçando-os no mesmo laboratório, quer dizer, na mesma favela que o fabricou.

Continuamos em breve.

Thiago

AlbertoJ

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