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Construção: Chico Buarque e a desconstrução do ser

Construção: Chico Buarque e a desconstrução do ser

A música homônima do álbum Construção, de 1971, interpretada e escrita por Chico Buarque, demonstra a sociedade e seu modelo de produção com um magistral toque de sensibilidade; mas não fica somente nisso.

Explicar as mazelas sociais advindas de uma insensibilização coletiva crescente a partir de versos musicais fez de Construção mais que um poema e um real manifesto sobre as angústias do ser; demonstrou a importância do indivíduo num mundo em crescimento, mas não em evolução.

Construção não se refere apenas ao trabalhador que “morreu na contramão atrapalhando o transito”, mas uma alusão ao momento vivido em uma ditadura militar que reunia em seus valores a coisificação das sociedades diversas, a impossibilidade de buscar direitos e o manejamento do homem em benefício de um sistema que o desgastava.

Assim, os versos alexandrinos destacam muito mais que o trabalhador braçal buscando seu espaço, sendo alienado de todos e inclusive do sistema, que o pretende cada vez mais servil e obediente. Demostram que a partir da ruptura social com o que deveria ser comum entre todos é que se faz desmoronar todo um sistema comunal, partindo-se para o individualismo, tão crescente em nossa era.

O operário, num sentido literal do próprio poema, é parte de uma alienação social e transformação em máquina de produção; destituído/degradado de suas características mais humanas, reconfigurados todos seus movimentos para a execução de ações diversas.

E, a partir disso, encerram-se os envolvimentos políticos, acaba/extermina as reais possibilidades de ideais de evolução do ser; que não é mais ser, não é mais nada. Cai ao chão como um “pacote bêbado” e, ainda, atrapalha os afazeres de outros, em pleno sábado.

Em um diverso sintoma da desumanização desabrocha Construção, pois parte do ser ontológico e sua dimensão que flui em si mesmo, mas necessita do outro para ser realizada.

E nesse contraste se enxerga o modelo social à frente, da DESconstrução do próprio ser, do homem em si e de seus ideais mais naturais e intrínsecos.

A própria construção do ser parte do seu reconhecimento e se acaba ao não ser reconhecido em um contexto público e comunicativo, onde o desprezo governamental que regia a época era o de ruptura com os atos/sentidos comuns, com o bem-estar social e dessa forma, com a pessoa em sua singularidade também.

Por outro lado, a crítica do poeta Chico Buarque vai além, podendo ser interpretada como a doença da sociedade sendo a própria gente que ela abriga.

O anonimato do próprio ser em seu meio social, a maquinal forma a qual realiza os atos do cotidiano (“…amou daquela vez como se fosse máquina”), as inutilidades de suas realizações demonstram a pessoa como “pacote, máquina”, generalizada em uma coisa, destruída ao cair de si mesmo, ao não mais se interpretar como alguém que tem voz, força e paixão.

E esse ninguém fica esquecido até que desestabelece o estabelecido e rompe o sistema posto, desarmando o aceitável; morrendo na “contramão e atrapalhando o transito”.

O anônimo, pedreiro de si mesmo, demonstrou o desinteresse social e regimental quanto aos seus próprios atos e a sua própria vida.


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Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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