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Criminologia Libertária ante a democracia representativa

Criminologia Libertária ante a democracia representativa

Devir-minoritário é um objetivo, e um objetivo que diz respeito a todo mundo, visto que todo mundo entra nesse objetivo e nesse devir, já que cada um constrói sua variação em torno da unidade de medida despótica e escapa, de um modo ou de outro, do sistema do poder que fazia dele uma parte da maioria.

Gilles Deleuze


Todos os partidos políticos, sem exceção alguma, enquanto aspiram ao poder público, não passam de formas particulares do absolutismo.

Pierre Joseph Proudhon


Ao analisar a sucessão Dilma-Temer-Bolsonaro à luz das histórias dos pensamentos libertários, notadamente descrentes da razão de governo e do princípio da autoridade, mostra-se complicado não recordar dos lembretes de nomes como Mikhail Bakunin e Pierre-Joseph Proudhon, entre tantos outros que marcaram profundamente a imaginação libertária.

Essa tríade de autoridades supramencionadas (Dilma-Temer-Bolsonaro) localizadas na recente história brasileira, revive e atualiza as contundentes palavras de Hakim Bey, sobre o “maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado após o outro, cada ‘paraíso’ governado por um anjo ainda mais cruel.” (BEY,1985, p.15).

A fé na linguagem criminal não é uma peculiaridade de esquerdas ou direitas, como explicitado na analítica libertária. Nos governos petistas, a população carcerária brasileira foi brutalmente ampliada, e trapalhadas como a lei antiterrorismo do governo Dilma (a ser redimensionada no governo Bolsonaro como indicam estratégias discursivas e direcionamentos criminológicos em jogo) seguirão produzindo seus danos, somados à ampliação das disputas em torno do que precisava ser, não elastificado, mas abolido.

São inúmeras as apostas em criminalizações e maior rigor penal energizadas por esquerdas e direitas, empolgadas em manusear, redirecionar, redesenhar e participar dos fluxos do poder punitivo, frequentemente sendo devoradas pelas mesmas redes que alimentam. Entre tantas imagens que antecipam o avanço da barbárie já existente, destaca-se por exemplo a perniciosa ideia atrelada ao governo federal, de inspirar-se no plea bargain norte-americano (entre inúmeras aberrações com etiqueta “anticrime”).

Esse instituto mostrou-se de modo verificável um grande instrumento de injustiça social, ferramenta de terror, ameaças e chantagens especialmente aos mais vulneráveis, consolidando acordos entre partes em brutal assimetria de poder, os representantes do Estado e o acusado, muitas vezes compelido a realizar o acordo com receio das enormes penas em caso de condenação, o que acomete uma quantidade esmagadora de inocentes aterrorizados, que dispensam o julgamento declarando-se culpados em busca de injustiças mais brandas, menores que as devastadoramente longas penas prometidas em tom de terror pelos agentes do Estado.

Assim, deparamo-nos com a “negociação” massificada de uma linha de formigas encarando sapatos e botas, um instituto de aniquilação social que prejudica as formigas “sobreviventes”, marcadas agora com o peso e as cicatrizes do acordo perpetrado, tendo dificuldades até para encontrar empregos, dessa forma alimentando um ciclo de violências que é receita para não acabar bem para quase ninguém, exceto para os beneficiados com as injustiças sociais, que lucram mesmo com o reconhecimento de acusações falsas por inocentes, acusados sujeitos e compelidos a apostarem: se reconhecem a culpa, ou se aventuram-se numa viagem praticamente sem volta, com todos os riscos de uma condenação brutalmente mais alta. O objeto da aposta: suas vidas.

Nos EUA, cerca de 95% dos casos são resolvidos através desse obscuro mecanismo de terror, submissão, coerção e arruinamento de vidas, embasado na lógica dos castigos e recompensas que orbitam o princípio da autoridade.

Os EUA também é o país com a maior população carcerária do planeta. E o governo federal brasileiro pretende se inspirar exatamente nesses campeões do encarceramento planetário: campeões da tortura institucionalizada chamada de justiça. A “eficiência” e a justiça do soberano, é claro!

É ainda de se destacar que a expansão do sistema de justiça criminal não representa oposição à “corrupção”, mas sua própria oxigenação; fortalecimento de uma dinâmica corrupta de torturas associadas ao “sequestro do conflito”, precisamente com discursos anticorrupção extremamente ludibriosos.

A “prisão”, como uma política disputada por esquerdas, centros e direitas, é vinculada à centralidade da justiça e linguagem do soberano: produção possibilitada e operacionalizada ante o princípio da autoridade e da punição, asseguradores da servidão sob a máscara de linguagem universal. Máscara e linguagem paradoxalmente mobilizada por cada autoridade do sistema como se fossem eles próprios tais centralidades e abstrações (quando são soldados dessas produções). Microautoridades com seus microfascismos.

Atuações que recepcionam e encarnam a imprescindibilidade de uma arte de governar que costura as sociedades de controle de forma praticamente inescapável, sem distinção “fora-dentro”. E a vitória de Bolsonaro promete agravar ainda mais o inferno prisional que é a realidade carcerária no Brasil, recobrando o anjo ainda mais cruel sublinhado por Hakim Bey, mas, especialmente, tornando muitíssimo escancarado o quão limitado se mostra acreditar que o fascismo será contido numa fórmula vertical que comporta a tirania da maioria enquanto ridiculariza e persegue a horizontalidade; busca do sacrifício do devir minoritário, na exaltação da subjetividade policial e de soldado que se crê moralmente conectada à justiça, permutando a potência de ser único pelo diploma de inscrição em uma maioridade que, também em função desse pertencimento, se visualiza como mais importante.

Como bradou Jair Messias Bolsonaro em 2017, em discurso inflamado ante seu rebanho, “as minorias têm que se curvar às maiorias”; além de: “as minorias se adequam, ou simplesmente desapareçam!”.

Quem acredita nas contenções da democracia representativa acerca do ódio à multiplicidade, especialmente a partir do sistema de justiça criminal, grande inimigo da multiplicidade por excelência, precisa desesperadamente parar de “militar” por novas criminalizações e pesquisar um pouco o que é a política prisional, o que é a linguagem criminal, e quais os desdobramentos dessas produções.

Os abolicionistas libertários apontam sobre a servidão que orbita a ilusão hipnótica da democracia representativa, que essa não deve ser simplesmente reformada ou disputada, devendo ser abolida; sua forma, lógica e funcionamento não são capazes de barrar o fascismo no âmbito molar, e nem dissolver os microfascismos no âmbito molecular, sendo, ao contrário, esses ingredientes estimulados, até a materialização da tendência aqui visualizada, a ascensão do referido “anjo”, tendência que não é simplesmente nacional, também não sendo programacionalmente estancada pelos funcionamentos democráticos, mas tolerada, permitida. Não se trata de um invasor, um corpo estranho, mas de um ingrediente previamente presente na fórmula e funcionamento real das democracias representativas e suas contenções de papel frente à barbárie institucionalizada.

Nenhum Estado e seus soldados se lançam radicalmente ao enfrentamento do fascismo, como apontado com Durruti; Proudhon por sua vez associou a forma e lógica dos partidos ao absolutismo; Malatesta também desfere seu ataque à mentira democrática atento às suas tendências programacionais, de cedo ou tarde desaguarem na barbárie, sem contê-la.

Como reafirmado nas vitórias de Trump, Bolsonaro e tantos outros “anjos”, a democracia representativa não é capaz de barrar o fascismo, comportando-o em seus próprios quadros, alimentando-o e difundindo-o com sua rede de blindagens e proteções.

Nesse sentido, é preciso explicitar que existe uma podridão intrínseca que não é externa aos funcionamentos democráticos, inexistindo a contenção das forças autoritárias sonhada pelos imersos no senso comum democrático, como apontaram os anarquistas e abolicionistas libertários.  

As muralhas antifascistas da democracia representativa são muralhas de papel: elas não bloqueiam, não anulam, não interceptam a maturação dos microfascismos na acepção deleuzeana e guatarriana, penetrantes nas células, e nem mesmo tal ascensão na macropolítica, caracterizando propriamente o fascismo.

Democracia e ilusão democrática

Isso dito, é preciso questionar a fé na linguagem da representação e analisar seus funcionamentos já explicitados por uma diversidade de autores, na medida em que não parece razoável negligenciar para sempre que existe algo de muito podre sendo celebrado. Nessa esteira, nem a democracia é o oposto da ditadura, e nem o próprio funcionamento de seus fluxos atua como barreira prometida (na tarefa de contenção do poder).

No ensaio “O indivíduo, a sociedade e o Estado”, Emma Goldman assinala sua cristalina oposição à ditadura, mas também à ilusão democrática[1] e seus rebanhos, que acreditam ter superado o horror ditatorial:

(…) conseguiremos apagar as taras da democracia com a ajude de um sistema ainda mais democrático, ou devemos cortar o nó górdio do governo popular com a espada da ditadura? Minha resposta é: nem um, nem outro. Sou contra a ditadura e o fascismo, e oponho-me aos regimes parlamentares e às pretensas democracias populares (…). Não é mais questão de saber se a ditadura é preferível à democracia, se o fascismo italiano é superior ou não ao hitlerismo. Uma questão muito mais vital se nos apresenta: o governo político, o Estado, é proveitoso à humanidade? Qual é sua influência sobre o indivíduo? (GOLDMAN, 2011, p. 29-30).

Os progressismos institucionais de esquerdas, frequentemente são as sobremesas que antecedem o prato principal tirânico – como Trump e Bolsonaro –, que cedo ou tarde brilham nos fluxos democráticos, na medida em que são edificadas contenções de papel acerca do avanço das piores criaturas, sendo obviamente destroçadas as liberdades – também de papel – celebradas.

Hoje, o prato principal emerge com Bolsonaro, um atalho nessa barbárie, mas que já estava notavelmente em curso. O recorte Dilma-Temer-Bolsonaro é excelente para apontar como o problema é profundo e não se limita a esquerdas, centros ou direitas, cada qual com suas alianças e adaptações; envolve encaixes abrangentes de nós mesmos.

Os subsolos que alimentam esses ciclos traiçoeiros permanecem vívidos, atualizados e redimensionados na atualidade das sociedades de controle, atravessados e constituídos pelos encaixes repressivos entre esquerdas e direitas, o que confere razão à Proudhon e sua crítica abrangente do que lhes originaria, delas diferenciando-se e se apartando das metas e centralidades envolvidas. Produções sacralizadas e celebradas, disputadas, sem abolições e reinvenções potentes, imersas na linguagem da representação e da autoridade, que reafirmam o universal em detrimento das singularidades da vida.

É salutar identificar o caldo autoritário emanado das ilusórias promessas democráticas na atualidade do século XXI, o que é observado e considerado pelos abolicionistas libertários, anarquistas contra o princípio da autoridade e da punição; contra os apaixonados pelo poder.

Como assinalou Mikhail Bakunin, as mais perfeitas promessas, contenções e proteções de papel não lhe eram suficientes; era-lhe, assim, indispensável algo diferente, destoante, mais vívido, mais concreto, mais potente. Algo que as promessas, programações e funcionamentos reais dos poderes estabelecidos jamais preencheriam, e com ressonâncias terríveis cobrando um alto preço.

Não precisamos de mais correntes, de mais fé no sistema de justiça criminal e suas autoridades, ou de mais fé na linguagem da representação; precisamos de mais potência, mais inventividade, mais educação libertária, mais vida.

Saúde!


NOTAS

[1] Nesse sentido, vale sublinhar a existência de vários textos atravessando o apontado como senso comum democrático, em crítica à legitimação do poder perpetrada pela ludibriosa linguagem da representação e participação, a exemplo do maior ensaio “Sociedades de Controle, Abolicionismo Libertário e Atualidade dos Anarquismos” (PIRES, 2018) que abre o livro “Abolicionismos e Sociedades de Controle”, e o texto “Anarquismos e abolicionismos frente à democracia representativa” (CORDEIRO; PIRES, 2017) abrangente do livro “Abolicionismos e Cultura Libertária”, sendo neles lanceada a miséria e retórica de seus discursos legitimantes, entre funcionamentos e ressonâncias bem visualizadas pelos anarquistas, levadas em consideração por alguns poucos criminólogos que não desprezam as histórias dos pensamentos libertários, e que ainda assim, não desejam demarcar proximidade com tudo isso, fazendo uso de autores muito menos potentes sobre a questão, mas filiados a tradições mais sedimentadas na academia, assim garantindo passe livre em suas trajetórias, como pensadores relativamente heterodoxos oficialmente filiados – por conveniência – às tradições de sua rede. Não por acaso, as reinvenções mais potentes que envolvem uma articulação complexa de autores são produzidas não graças à coesão dessas sedimentações acadêmicas, mas em sua brutal contrariedade, fatiando e produzindo o novo; também se recobrando que alguns dos problemas não derivam da falta de saídas existentes, mas de sua desconsideração e/ou uso limitado, o que é notável nas criminologias contemporâneas.


REFERÊNCIAS

BEY, Hakim. T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária. 1985.

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Cultura Libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

GOLDMAN, Emma. O indivíduo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios. Organização e tradução de Plínio Augusto Coêlho. 2. ed. São Paulo: Hedra, 2011.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.


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Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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