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Ciência versus Criminalidade: a história que se repete!

Por Mariana Py Muniz Cappelari

Hoje pretendo escrever acerca de uma notícia, ou melhor, em cima dela, a qual circulou na internet e nos jornais nessa semana passada. Trata-se, nada mais nada menos do que a pretensa afirmação que embora negada pela Assessoria do Parlamentar, teria sido revelada pelo Relator da PEC da redução da maioridade penal, no sentido de que teria ele a esperança de que em longo prazo a ciência irá resolver os altos níveis de criminalidade do país, possibilitando, assim, e, inclusive, o aborto de fetos com tendências à criminalidade.[1]

Tal pretensa afirmação, para além do absurdo que revela e do preconceito que encerra, com todo o devido respeito, fez-me recordar parte da história da criminologia científica, a qual, é verdade, ainda se verifica na atualidade, nos chamados modelos biológicos, desenvolvidos no âmago da criminologia moderna científica. Portanto, de atual essa pretensa afirmação nada tem, muito pelo contrário. Vejamos.

Pode-se dizer que a criminologia tem por objeto o crime, a pessoa do infrator, a vítima e o controle social.[2] Entretanto, ao longo da sua própria história enquanto ciência; é fato que a criminologia creditou maior tempo e dedicação ao estudo do crime e, principalmente, da pessoa do infrator, entendendo que assim, ao menos naquele momento, apenas por um único ângulo (o do homem dito delinquente), pudesse chegar à descoberta da causa do crime e da criminalidade, como se tal fosse tão simples assim.

Pois bem, de acordo com Zaffaroni,[3] na segunda metade do século XIX, quando, então, a burguesia já efetivamente tinha ascendido ao poder, a ciência torna-se a nova ideologia dominante, sendo o ser humano o todo-poderoso, na medida em que podia controlar a natureza e chegar a vencer a própria morte. Como a teoria do contrato social assim não mais auxiliava no controle dos ‘indisciplinados’, surge, de acordo com o mesmo autor, um novo paradigma, que era o do organismo (a sociedade como um órgão), fundado na natureza e revelado pela ciência.

Nesse marco, portanto, temos o chamado positivismo criminológico, que, de acordo com Zaffaroni,[4] foi sendo armado em todo o hemisfério norte e estendeu-se ao sul do planeta, como parte de uma ideologia racista generalizada na segunda metade do século XIX e que terminou catastroficamente na II Guerra Mundial. Entretanto, podemos afirmar, ainda na sua esteira, que toda essa ideologia se inicia muito antes de Lombroso, quando se lançaram as primeiras teorias que pretendiam uma etiologia orgânica do delito, por exemplo, com Morel, em 1857, quando, então, expôs a sua teoria da degeneração, segundo a qual, em razão da mescla de raças humanas combinarem fios genéticos muitos distantes, tinha por resultado seres inteligentes, mas moralmente degenerados, desequilibrados, incômodos. Assim como com Raimundo Nina Rodrigues, em solo brasileiro, dito fundador da criminologia brasileira, o qual combatia a mestiçagem com base na degeneração.

A tese Lombrosiana do criminoso nato, um ser atávico, o qual afirmava poder reconhecer pelos caracteres físicos, apenas, deita raiz na ciência da fisionomia, desenvolvida ainda nos séculos XVII e XVIII, quando se achava possível deduzir de dados físicos e orgânicos, tão somente, caracteres psicológicos do indivíduo.

Em outra obra, Zaffaroni[5] nos dá conta de que a atualidade ressuscita a frenologia, quando lança a teoria de que a violência está associada a disfunções frontais no cérebro e a agressão sexual a disfunções temporais, bem como se pretende, nesse espaço biológico, que a genética ocupe o lugar que nos anos 1930 era ocupado pela endocrinologia criminal, com o reaparecimento das teorias biotipológicas.

No entanto, questão que muito bem pontua acerca dessas ‘novas’ descobertas científicas, é a seguinte: “Nunca se pode confundir uma correlação com uma causa. Um baixo nível de serotonina se correlaciona com uma conduta agressiva, mas é o baixo nível de serotonina que condiciona o comportamento agressivo ou é o comportamento agressivo ao longo da vida do sujeito que condiciona o baixo nível de serotonina?”

Dessa forma, a ideia de que a ciência é quem irá nos salvar de todos os nossos males, não é nada atual, muito pelo contrário, conforme rapidamente tentamos pontuar. Entretanto, o que mais nos causa espanto e preocupação com ideias dessa monta, é de que ao serem tomadas por uma ideologia racista, restaram foi sim é no extermínio de inúmeras vidas.

Sendo certo que “quando se parte do pressuposto de que o ser humano é um ente puramente biológico que, quando mais bem construído, está destinado a usar os outros humanos que saem defeituosos ou pertencem a séries com menor sofisticação, não é nada difícil concluir que esses últimos podem ser destruídos se criarem obstáculos aos mais perfeitos em sua tarefa de construir outros melhores. O aniquilamento de todas as raças inferiores e incômodas é um corolário quase necessário desse ponto de partida. Também o é que não vale a pena manter presos os fracassados internos que causam problemas aos aparatos mais aperfeiçoados. A eliminação dos que custam muitíssimo dinheiro aos manicômios e asilos não é menos coerente. Mais ainda. Explicam-se essas consequências quando esses recursos são considerados necessários para sustentar os perfeitos que oferecem sua vida nas trincheiras após a conquista do planeta. Consequentemente, fica claro que os campos de concentração, de trabalho forçado e de extermínio tenham sido legitimados com racionalizações provenientes do racismo positivista. Justamente quando, ao final da Segunda Guerra, já ninguém podia mais ignorar o que os povos longínquos ou os subalternos muito distantes de seus bairros sofriam, porque acabava de acontecer na casa do vizinho ou mesmo na sua própria, o paradigma mudou rapidamente.” (ZAFFARONI, 2013, p. 96).

E, ainda, sabemos a quem se deveu essa mudança de paradigma no plano mundial? De acordo com Zaffaroni, a Declaração Universal de 1948. Declaração Universal de que mesmo? Ah, de Direitos Humanos! Agora, se ela foi ou está sendo suficiente a enraizar esse novo paradigma (ao que nos parece as notícias mais atuais nos dão conta do contrário, chegando-se ao absurdo de expressões como direitos humanos para humanos direitos), isso é outra história.    

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[1] Disponível aqui. Acesso em: jul. 2015.

[2] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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