ArtigosSociologia Criminal

A estigmatizante rotina da pós-modernidade social e criminal


Por Iverson Kech Ferreira


Os estudos das formações sociais que delimitam o espaço estrutural das relações de poder entre os mais diversos alicerces sociais existentes, como grupos, classes, subgrupos e subclasses, entre essas, os estabelecidos e os que conotam marginalidade (dessa questão á margem entenda-se não participante de uma maioria, ou daquele contexto estabelecido) passam a uma transfiguração do que já foi pesquisado em épocas recentes, porem, a questão agora se define pela consciência de uma superestrutura montada pelo cotidiano formal, pelos singelos acontecimentos do dia a dia pós moderno.

Analisar a rotina dos elementos da vida pode ser a peça fundamental para que se possa entender os caminhos que tomamos, por intermédio de um jocoso jogo de interesses, entre grupos distintos no âmbito social. Uma coletividade se define por seu sedimento bem estruturado independente de outros aglomerados viventes na mesma societas. Destarte, os caminhos tomados por Norbert Elias ao analisar Wiston Parva, sua cidadezinha modelo de onde retirou as conclusões sobre os estabelecidos e outsiders, hoje nos levam a outras passagens imediatas e qualquer conclusão que não leve em conta as mudanças de lá para cá pode ser tomada como leviana.

A essa nova fase que Giddens nomeia como sociedade moderna tardia, ou surmoderne para Balandier, reconhecida também por Bauman como pós-moderna, traz sua peculiaridade submersa em uma inexatidão constante. De um período do tempo para hoje, o salto envolvendo tecnologias foi fenomenal. Os mercados se reagruparam sobremaneira, esperando sempre as quedas de governos totalitários na América Latina e em outras partes do globo (como exemplo), arrumando-se para um paradigma que concebia o consumismo como seu ápice moral. Esse dia chegou e não tardou em realizar suas proezas em meio ao contexto social, transformando a maneira de se entender e assim, estudar os tratos sociais.

Ocorreu que no meio do caminho, sabe-se lá onde, mas se entende que seja entre os ares do paradigma tecnológico que forçosamente adentrou o mundo, uma ponte foi quebrada. Onde havia uma experiência criou-se em tão pouco tempo uma realidade tal qual Pandora, ao intervir no jarro de Zeus libera novos ares ao mundo. É claro que, diferentemente da caixa grega, o mundo conheceu por intermédio da tecnologia efetivos efeitos positivos, mas também, perdeu um pouco daquilo que mais o mantinha como sociedade: a convivência de fato. Os laços nos dias de hoje são efêmeros, como é passageiro tudo o que a tecnologia hoje cria, obsoleto em minutos, ultrapassado em horas. E com esse novo caminho as rotas levaram cada vez mais ao consumismo, ao gasto e ao apelo do mercado, que geralmente é tão forte o quanto pode ser.

Nesse turbilhão, a divisão entre os grupos se dá sob uma nova perspectiva, numa ótica de aparências daquele que tem o poder de compra entre aquele que não o tem. O consumo conspícuo (Pareto) oferece a queda da tristeza e da falta de convivência, aumento do poder e assevera a posição, fincando a bandeira do grupo do qual se faz no mundo: no grupo consumidor.

Entre esses status garantidos pelo consumo, nota-se a passagem da efemeridade (Bauman) que garante uma felicidade constante no detentor do poder de compra, mas não uma satisfação. Felicidade é o que se pode comprar, satisfação ainda tarda e nesse sistema, não chega. No meio disso tudo, desde o momento em que a ponte foi abruptamente rompida entre um e outro paradigma, esta a fragmentação social (Debord) entre os espaços sociais, entre as próprias relações do ser humano, cortada em partes que nunca chegam a ser inteiras, moldou um caráter de desapego entre os cidadãos, onde o que é problema de um não é de outro e vice versa. Não existe mais argamassa social ou a solidariedade humana, sentimentos rompidos pelo medo do outro e pelo receio da intrusão desse estranho em seu modelo de vida.

Dessa forma, todos os sentidos que antes agregavam foram polarizados, os espaços públicos (praças, parques) pertencem agora apenas para alguns poucos desafortunados, mansões que vendem produtos (shopping center) e status social são frequentados por outros e esses dois agrupamentos se distanciaram sobremaneira, de certa forma, que não há mais retorno pacífico. Ao invadir um o lugar do outro nos dias supermoderne, sentimentos enraizados em medo, pavor, mixofobia, racismo e intolerância são o estopim para que o sistema penal venha a ser o divisor de águas, um cego no meio do tiroteio que somente deseja por ordem meio ao caos para que possa continuar sua jornada.

Ao aspecto consumista dentro das sociedades, mesmo que ainda exista subgrupos e grupos definidos como consumidores natos, existe uma grande fatia da sociedade que não se encaixa nessa vida de consumo, mas que, batalha para que possa fazer parte também do quinhão que todos beliscam. Há os desejosos por consumo que não chegaram ainda lá, que estão a margem do agrupamento maior, que são os desempregados, os adoentados, aqueles que, por um motivo ou outro da vida e suas consequências não podem, não conseguem fazer parte ainda desse mercado consumidor, são os desajustados sociais.

Essas pessoas formam o grupo dos bestializados pelo sistema, um novo rumo que nem Wiston Parva com tanta eloquência poderia prever, o agrupamento daqueles que, mesmo não estando a margem de nenhum grupo estabelecido, e muitas vezes ainda, fazendo parte dos estabelecidos, são os que não podem e não conseguem adentrar esse mundo de consumo. Entretanto, ao criar um subgrupo dentro do ajuntamento principal, cria-se também a chamada falta de identidade ao grupo e perante o grupo. Essa identidade, formada pelo convívio social entre os integrantes do grupo, pode vir a ser rachada pela falta de poder de compra, de uma forma bem sucinta, pelo motivo de  não fazer parte do mercado, não consumir como os outros iguais, não permanecer como consumidor ativo, mesmo em suas efemeridades.

Assim, a identidade formada durante anos passa a ser questionada pelo próprio sujeito bem como, pelos indivíduos que compõe o agrupamento e lhe são próximos. Ainda, a ponte quebrada lá em meio ao surgimento do novo paradigma deixou migalhas que pudessem ser seguidas e dar a resposta do sistema para essas pessoas, que não pertencem ao grupo mas estão no limbo, entre o inferno e o paraíso porem, mais próximas da ardente chama da culpa e da falta de aceitação própria, da intolerância alheia e do menosprezo pessoal. Esse divisor de aguas é a criminalização dessas pessoas, a separação daqueles que estão inertes diante a uma massa consumidora, diante aqueles que têm o poder de compra.

Destarte, o sistema diferencia, entre aqueles que perfazem um grupo e outros que perfazem o mesmo grupo, mas não podem, em sua totalidade, fazer jus ao mesmo status dos outros componentes. As pessoas que estão já marginalizadas diante aos estabelecidos e formam seus grupos de semelhanças e de segurança, como comunidades, favelas, cortiços, pobres, negros, imigrantes, entre outros, são as visadas para, junto dos desempregados, doentes, dos infortunados por qualquer momento ou casos da vida, pessoas essas que não fazem o modelo exato do cidadão dessa modernidade tardia ou pós-modernidade, ao estigma. Para essas pessoas resta a criminalização do sistema, em um primeiro momento, a criminalização dentro dos grupos, que mesmo sem quebrar qualquer tipo de regra penal pode oficializar o rompimento, criminalizar, separar o joio do trigo, ou como queiram, separar e acabar com as ervas daninhas.

Antes a estigmatização era tida em meio a vida social, daquilo que representava o sujeito no meio da sociedade, ou seja, o que poderia esperar que fizesse, aquilo que era esperado do indivíduo, grosso modo (Goffman). Nos dias atuais apenas a diferença já é passível do estigma, e numa ampla globalização tanto mundial quanto dos pequenos atos da cotidianidade, o estigma pode vir contra aquele que não faz parte do mundo consumidor e do consumo desenfreado. Entre esses estão todos os numerados no paragrafo anterior, que perfazem as fileiras dos ingressos dia a dia no sistema criminal, vistos como desajustados e desocupados, que tanto são encontrados em meio aos espaços de convivência social (praças, parques), quanto aos que jazem em longas e demoradas esperas nas filas de emprego das cidades, os desempregados e aqueles não tecnologicamente interligados ao mundo da conexão e da tecnologia.

Dessa forma, estigmatizar e criminalizar certas pessoas, escolher aqueles para quem o sistema deve vigorar contra é mais fácil do que conviver, amparar, tendo num conceito niilista, a negação do ser humano como indivíduo de semelhantes necessidades e desejos, desvalorizando o próprio conceito de ser humano o seu ápice fatal. A facilidade com que se selecionam então esses desgarrados do rebanho é tremenda, e contra esses, a única proposta é a vigilância serrada (Foucault) dos órgãos de controle, tanto estatais quanto particulares (segurança privada, fábricas e controle, controles internos).

A negação da vida do outro que não compartilha dos mesmos meios, tanto nos espaços públicos quanto dentro dos grupos é o estopim que poderá ser aceso a qualquer momento, jogando todo o sistema regulamentador contra apenas um agrupamento, contra apenas um inimigo: o diferente, aquele não reconhecido como consumidor nos dias atuais, o vizinho.

Os tempos de solidariedade humana e de construção de uma argamassa social formada pelos valores da alteridade e cidadania não passam de utopia em frente ao cenário do amplo mercado e da estigmatização daquele que não faz parte dessa realidade. O perigo iminente é a distinção, tanto do criminoso quanto daquele passível em ser o criminoso, pelas lentes dos que pretendem deixar a situação como está, ou seja, consequentemente, deixar piorar.


REFERÊNCIAS

ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade/ Norbert Elias e John L. Scotson. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

GOFFMAN, Erwing. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Ed. LTC, Rio de Janeiro, 1988.

Iverson

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo