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Direito Penal como delírio coletivo

Direito Penal como delírio coletivo

Mentalidade. Uma categoria tão cara à historiografia contemporânea, uma forma de explicar a realidade de modo alternativo ao positivismo e ao próprio materialismo histórico, sem descartá-los: incorporando-os.

Diferentemente do panorama psicanalítico, a mentalidade “historiográfica” trata de uma ampla forma de compreensão de mundo, inserido em contexto preciso (histórico e geográfico), que muito – ou tudo – nos diz sobre esse tempo e esse espaço.

A Escola dos Annales, especialmente na sua “terceira geração”, é proeminente no estudo da história das mentalidades. É um bom caminho para aprofundar esse tema.

É certo, porém, que o modo mais conhecido é o da psicanálise, tanto em sua forma primária (de Freud a Lacan) quanto por uma das mais conhecidas derivativas: Jung. Aqui, aliás, a ideia de arquétipo e inconsciente coletivo ganha vigor. É através das “imagens universais”, por Jung denominadas arquétipos, derivativos do inconsciente coletivo – substrato psíquico mais profundo e inato aos seres humanos, além do inconsciente pessoal [freudiano] –, que a mentalidade se incorpora no pensamento humano (e na sua cultura e mitos e crenças).

O Direito é mentalidade. Justiça é mentalidade. De qualquer ótica, Direito e Justiça – apesar do esforço de demonstração das teses românticas sobre a anterioridade do Direito nas sociedades e mesmo na política – estão presentes nas sociedades, ao longo da história, de modos diversos: legislações, formas, ritos, conceitos, categorias, personagens, cada qual seguindo uma modalidade que acompanha o tempo e o espaço de dado paradigma.

Matéria e processo no Egito antigo; no mundo grego; no tempo romano; no medievo feudal; no renascimento; na modernidade capitalista de três ou quatro fases… não há como pretender qualquer linearidade entre esses tempos e espaços no que tange ao Direito: e muito menos ao Direito Penal.

A história do Direito Penal – qualquer história, a mais elementar, manualesca mesmo – é capaz de demonstrar essa descontinuidade.

Todavia, toda história do Direito Penal contém um elemento comum, talvez nuclear (que se configura, afinal, na razão de ser do próprio Direito Penal), facilmente observável em todas as tradições que se utilizam do Direito Penal para “conter” o ímpeto e a ambição dos seres humanos: a crença num mecanismo de cerceamento das liberdades infinitas.

Crença é sentimento.

Então, quem está submetido ao Direito Penal crê, sente, acredita e se vincula a um comando de restrição de sua subjetividade e de seu comportamento em sociedade. No fundo, é o idêntico mecanismo das religiões, dos mitos, da cultura.

Eu creio no Direito Penal quando creio no Estado representante de uma sociedade que faz Direito Penal. E quando todos cremos no Direito Penal e sentimos a “justiça” dele emanar (mediante processos e condenações e punições e encarceramentos), projetamos no mundo um delírio coletivo: todos acreditam no Direito Penal, quando, na verdade, ele não existe.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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