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Grades, polícia e miséria na ilha-capital do Espírito Santo

Vitória – Espírito Santo, frequentemente descrita como uma capital maravilhosa na região Sudeste do país, é também uma das que mais imprime contradições monstruosas acerca da qualidade de vida invejável vendida, figurando em rankings internacionais e alçando destaques como péssima cidade para negros, gays, mulheres; cidade-capital da depressão, dos suicídios, da melancolia, gosmificada da morte por “normalidade”, do controle penal no estado que saltou para 20.000 presos e quer se vender ao resto do país como modelo de segurança pública e “boas prisões”, “bons governos”.

Segundo o Raio X do sistema prisional de 2017, a capacidade do Espírito Santo é para 13.873 vagas, ou seja, tem-se uma superlotação acima de 40%, e, para piorar, as respostas vendidas orbitam não o desencarceramento, mas mais prisões, que tão logo construídas, lotariam, alimentando a expansão do sistema penal e suas demandas com mais alimento político-sacrificial dessa versátil máquina de moer, que atua principalmente como uma política, diga-se de passagem, extremamente funcional ao princípio da autoridade (sobre o qual se repercutiu o maior achatamento de subjetividades, obliterando a horizontalidade, o apoio mútuo, a experimentação de liberdades não tragadas por constelações repressivas nas sociedades de controle, que, diante de tamanha versatilidade de capturas, não duram mais que instantes, sob risco de formatação).

Em 2005 eram apenas 5.221 presos no Espírito Santo, que em 2012 já corresponderiam a 14.733 (conforme InfoPen), demarcando um crescimento monstruoso. No final da década de 80, quando nasci, explicar a que ponto chegaríamos em termos de encarceramento em 2017, local e nacionalmente, se possível fosse, talvez parecesse absurdo.

Atualmente, isso está mais que naturalizado: encontra-se cristalizado, e com o sentimento de que não é suficiente, sendo preciso mais prisões e policias para manter o jogo repressivo estruturado na embriagante arte de governar, autoproclamada (e muitíssimo difundida) como imprescindível à “vida em sociedade”.

Seguimos aprisionando mais, e os cidadãos relatam cada vez mais insegurança, alavancando todo um mercado que se perpetua ante a miséria do pensamento político e suas produções repressivas.

Nos bairros mais nobres, a quantidade (e uso de armamentos) das polícias e seguranças privadas chama a atenção. De fato, e aqui coloco na mesa algumas experiências, ao longo dos últimos anos, tornou-se comum escutar de conhecidos de outros países, ao visitarem minha cidade, que é impressionante o número de policiais nas áreas escolhidas (a dedo e a mando) para serem controladas, vigiadas, monitoradas.

Pessoas de outras cidades demasiado distintas dessa cultura da fantástica ilha-capital vendida, se chocam com as discrepâncias.

Ainda assim, os moradores dessas zonas parecem ter a exata contrária percepção: sentem-se assustados, sentem verdadeiramente que as coisas vão mal, que falta mais polícia, uma melhor armada e preparada, mais “eficiente”. Mais: que isso não basta, que precisam se armar.

Todos. Moradores desses bairros nobres ainda acreditam fortemente nisso.

Não é incomum o vislumbre dos que sonham com o dobro, o triplo, o quádruplo de policiamento. Dos que celebram a formação de cada novo batalhão especializado. Dos que aplaudem exércitos.

Dos que ovacionam e bradam por “intervenção militar constitucional” (sic). Querem mais. Muito mais. Querem até ser parte do policiamento. Policiar vidas. Policiar cada nuance. Carcereiros no íntimo. Imaginações encarceradas, até inventivas para governos e controles, mas sobremaneira fajutas em produzir o ingovernável.

A “greve” da PM no Espírito Santo (2017), em seus direcionamentos, convocações a horrendas participações em violências, e quebra de braço entre autoridades,  descrita como caos pelos consumidores dessas redes e seus tentáculos, indica e nos fornece principalmente uma amostra-termômetro da quantidade de pressão necessária para se manter a artificialidade dessa coesão forjada (leia AQUI) na capital, acompanhada das dores e sofrimentos no ritmo da “normalidade” sedimentada e engolida.

Normalidade assegurada com marteladas, símbolos e propagandas de terror, se assim mostrar-se preciso, como devaneiam imersos no senso comum criminológico e democrático (leia AQUI).

Nesses bairros, a miséria, ou melhor, os miseráveis, encontram-se sempre próximos, e ao mesmo tempo profundamente distantes do luxo; as polícias são notoriamente para servir esse reduzido grupelho de VIPs, como no bairro da Ilha do Boi, cuja entrada é vigiada e monitorada pelas polícias.

Na saída dos restaurantes, lá estão eles: crianças, idosos, a mãe amamentando o bebê, paupérrimos no chão, se auto-organizando para decidir quem pedirá a desejada marmita.

Alguns metros dessa visão, pessoas exibindo mais energia, se propondo a lavar carros, engraxar sapatos, vender panos e águas, com seus corpos bronzeados, mas desnutridos, ao contrário dos VIPs bronzeados e “sarados”.

Nessa “normalidade”, a maioria dos assalariados segue suas rotinas, recebendo o suficiente para sobreviver, sem tempo e condição de questionar a ordem das coisas, e sentir a dor dos outros: precisam dormir para trabalhar no dia de amanhã.

Aprendem que para seguir em frente, precisam engolir tudo isso, e continuar focados em suas metas e carreiras, ignorando gritos e naturalizando razão de governo e amor às autoridades.

Mais polícia, mais presos, mais miséria, mais sensação de insegurança.

Não entenderam a interação e ressonâncias de tudo isso.

(?)

Não entenderam o ritmo da realidade planetária achatada pela miséria do pensamento político, que preconiza, e que anuncia, o mundo das autoridades: um mundo para as autoridades, e em função das autoridades (e suas supostas imprescindibilidades, controles e hierarquias).

(?)

Em verdade, muitas autoridades bem entenderam.   

 

Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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