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O caso do médico argentino e uma breve incursão na legítima defesa

A presente coluna pretende abordar um tema que permeia o imaginário popular e ainda causa inúmeras dúvidas na comunidade jurídica: a legítima defesa. A fim de explicar o instituto e demonstrar suas reais dificuldades, trazemos um caso concreto.

Um médico argentino, especialista em cirurgia, de 61 anos, saía de seu consultório conduzindo um belíssimo automóvel sedan, por volta das 21 horas. Quando manobrava de sua garagem em direção à rua, foi surpreendido por um sujeito, de 24 anos, armado com um revólver calibre 16 que o mandou deixar o veículo imediatamente. Ao obedecer à ordem, o médico notou que o sujeito não conseguia terminar de manobrar o carro, que permanecia “queimando pneu” no mesmo lugar, pois este possuía câmbio automático. Assim, aproveitando-se da situação, o médico correu para seu consultório e retornou munido de uma pistola calibre 9 mm e, sem titubear, efetuou quatro disparos em direção ao sujeito, matando-o quase que instantaneamente. Os disparos, todos os quatro, atingiram a parte superior do tórax.

Ao contrário do que possa parecer, esse caso é uma história real, não um caso hipotético, e passou-se na Argentina, em 26 de agosto de 2016, na cidade de Loma Hermosa.

A situação foi bastante divulgada no país vizinho e dividiu mídia e opinião pública. Não se sabia ao certo como definir o caso, se seria uma legítima defesa, ou se efetivamente estar-se-ia diante de um caso de excesso na justificante.

A resposta aos questionamentos é mais complexa do que parece ser e, seguramente, a solução ao caso concreto passa além de construções simplistas.

O Código Penal, tanto brasileiro, como o argentino, consideram a legítima defesa uma causa justificante do fato típico. Com isso, quer-se dizer que, embora a situação concreta seja adequada ao tipo penal, no caso o homicídio, o próprio direito penal reconhece que, às vezes, faz-se mister permitir ao próprio cidadão tutelar-se, até mesmo reconhecendo a insuficiência e a impossibilidade da norma penal atuar em toda e qualquer situação.

A legítima defesa é, antes de tudo uma agressão, mas uma agressão dita justa contra outra injusta, real ou iminente, contra bem próprio ou de terceiros, desde que se lance mão dos meios necessários e proporcionais.

Esse instituto jurídico não é fomentado pela legislação penal, porém, como dito, veio estampado na legislação penal diante da impossibilidade de onipresença do Estado na defesa dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico. Não se pode nunca olvidar que “o direito não pode recuar diante do injusto” (BACIGALUPO, 2014, p. 93), por isso, mesmo que na situação concreta seja possível ao defendente fugir, a lei não o obriga a isso.

Quando se prevê a legítima defesa contra agressão injusta, na realidade, quer-se afirmar que a agressão não pode partir do defendente, mas, sim, do ofensor. Caso contrário, é o próprio defendente quem se reveste na condição de injusto agressor. A propósito, a injustiça da agressão não exige que se amolde a um injusto penal (ou seja, conduta típica + ilícita). O que se exige, em realidade, é que haja uma ilicitude na agressão, o que culmina em dizer que basta à agressão, para adquirir o caráter de injusta, que ataque algum objeto tutelado pelo ordenamento jurídico, inclusive aquele que não tem caráter penal (podendo ser até um ilícito civil).

Além disso, exige-se iminência ou atualidade na agressão, ou seja, deve, respectivamente, estar prestes a ocorrer ou acontecendo efetivamente – o que deve ser aferido não segundo o tempo cronológico, como um relógio, mas a partir da manifestação de vontade do agressor direcionada de forma manifesta e inequívoca ao ataque do bem jurídico do defendente ou de terceiro.

Todavia, o requisito decisivo, e talvez, mais controverso seja, notadamente, a exigência de necessidade de utilização do meio escolhido e a moderação em seu uso.

O meio necessário costuma ser definido como aquele meio menos lesivo e eficaz à repulsa da agressão injusta, fazendo-a cessar, a partir de uma projeção anterior (ex ante).

Segundo Enrique Bacigalupo (2014, p. 94), a defesa deve ser necessária (o que não se confunde com meio necessário), mas isso não significa dizer que o dano causado ao agressor deva ser proporcional ao eventual dano que a agressão injusta causaria se efetivamente houvesse acontecido. É dizer, o meio necessário deve ser retirado a partir da situação posta e da necessidade de defesa. Se um sujeito pode defender-se optando entre um bastão ou uma pistola, ambos com plena capacidade de fazer cessar a agressão, deve, por óbvio, escolher o meio menos lesivo, o bastão. No entanto, se não há possibilidade de se optar por outro mecanismo que ocasione menos danos, restando, muitas vezes, apenas a hipótese de se matar o agressor, ainda assim pode-se falar em legítima defesa.

Para o ilustre doutrinador (Bacigalupo, 2014, p. 95), no entanto, a legítima defesa tem por barreira seus próprios limites éticos. Em suma, não obstante a lei abstenham-se de trazer tais limites, eles existem, sendo, basicamente dois: i) o dano causado ao agressor não pode ser demasiadamente desproporcional àquele que seria causado se a agressão injusta se concretizasse; e ii) nas relações pessoais próximas, como as de pais e filhos, o agredido deve adotar medidas suaves ou optar por outras formas de escape, como a fuga.

Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 581) também enxergam na desproporcionalidade entre o dano causado pelo defendente e aquele que poderia ter sido causado pelo agressor um motivo apto a tornar a defesa algo ilegítimo.

Para alguns autores, como Eugenio Pacelli e André Callegari (2015, p. 325-326), o que se deve perquirir é a natureza da agressão e da reação, numa análise a partir das circunstâncias do caso e dos envolvidos.

Logo, mesmo que se trate de agressões que se utilizem dos mesmos meios, sendo compatíveis entre si, como um soco de “A” para defender-se do soco “de B”, se “B” por um acaso for um senhor idoso e debilitado e “A” for um lutador de MMA, estar-se-á diante de uma defesa ilegítima de “A”. Porém, se imaginarmos ao contrário, o senhor idoso “B”, ao ver-se diante da possibilidade real de sofrer um soco direto de “A”, lutador, saca um pistola e mata o agressor, poderemos, a prima facie, falar de legítima defesa.

Mas, mesmo assim, há que se observar outro ponto crucial: a moderação.

Embora necessário, o meio deve ser utilizado como moderação, é dizer, a intensidade de seu uso deve ser suficiente para repelir a agressão, o que ultrapassar isso será excesso. A moderação, pois, refere-se à forma como o meio é empregado e deve ser sopesada a partir da intensidade real da agressão.

Um meio, ainda que necessário, se usado de maneira imoderada, poderá resultar no excesso de legítima defesa.

Por derradeiro, cabe dizer que quem age em legítima defesa deve ter conhecimento disso, deve ter consciência e vontade de legítima defesa.

Agora, munido das informações dogmáticas, voltando ao caso que abriu esta coluna, o que acha que aconteceu em Loma Hermosa, Argentina? Legítima defesa ou excesso?


REFERÊNCIAS 

BACIGALUPO, Enrique. Lineamentos de la teoría del delito. 4. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2014.

PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de direito penal; parte geral. São Paulo: Atlas, 2015.

ZAFFARONI, Eugênio; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

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