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O delito: quando e como proibir (resenha)

Por André Peixoto de Souza

Continuo aqui o resumo da terceira parte do livro do Ferrajoli (Direito e razão), intitulado “O delito – quando e como proibir”. Menos que uma resenha, são anotações pessoais de leitura que vão agora para o canal.

Na primeira parte o autor me lembra imediatamente de uma expressão atribuída a Sólon, mais ou menos assim: as leis são como teias de aranha, que apanham os pequenos insetos e são rasgadas pelos grandes. Quando Ferrajoli esboça uma “ética da legislação”, distinguindo proibição penal e reprovação moral, aponta uma necessária autonomia entre essas duas esferas. Sendo assim, Beccaria ecoa Sólon, na máxima: “… a maior parte das leis não são mais do que privilégios, isto é, um tributo que todos pagam para o conforto de alguns” (p. 424).

Essa é a saída para desenvolver uma teoria dos custos da pena (e da proibição), a que o Direito Penal não deve ultrapassar um único milímetro de limite. Esse é o seu ensinamento: “Justamente porque a intervenção punitiva é a técnica de controle social mais gravosamente lesiva da liberdade e da dignidade dos cidadãos, o princípio de necessidade exige que se recorra a ela somente como remédio extremo” (p. 427). E toma a Declaração (de 1789) como marco de essencialidade para a moderna ideia de “Estado de Direito”, quando aduz que a liberdade assume papel fundamental na construção de um futuro direito penal mínimo.

E, “minimamente”, esclarece que, ao ser efeito de uma ação, o dano se equipara ao delito (este, como pressuposto da pena) também na qualidade de concretização de uma ação humana capaz de ser descrita pela lei – há aqui um claro germe de positivismo penal. Não bastasse, essa ação humana, quando consagrada criminosa, deve ser fruto de uma decisão intencional e consciente – e aqui está o germe da culpabilidade: consciência e vontade de fazer, mediante capacidade de entender e querer fazer (não há pecado se não há intenção de pecar). Sumula com Hart: “… quando as coisas vão mal, como acontece quando se cometem erros ou se produzem acidentes, uma pessoa que tenha dado o melhor de si para respeitar o direito, não será castigada” (p. 451).

MAS… não obstante todo o notório desenvolvimento da teoria do crime, a velha escola positivista conseguiu se enraizar na mentalidade moderna, e a ação humana, a forma de agir, acaba dando lugar à forma de ser! A principal crítica levantada por Ferrajoli vem no sentido de que tal julgamento se choca diretamente contra qualquer garantia de culpabilidade! Vejamos: “… o lugar das bruxas tem sido ocupado pelos hereges, os judeus, os infiéis e, na época moderna, pelas classes e sujeitos perigosos, ociosos e vagabundos, pelos propensos a delinquir e os afeitos a transações ilícitas, pelos inimigos do povo e os subversivos, por desordeiros e mafiosos e por outros tipos de autor ou de delinquente. (…) tipologias e classificações de autores e delinquentes em substituição às tipologias e classificações de ações e delitos… tipologias morais, políticas e sociais… desviações mentais ou morais” (p. 463). E “ao castigar e reprimir a identidade desviante independentemente das ações realizadas, as normas penais constitutivas pressupõem que somos, natural ou socialmente, diferentes, e expressam, com isso, a intolerância para com as pessoas anormais ou simplesmente diferentes” (p. 464).

Eu não devo me ater a esse tema (positivismo penal) porque sobre isso a colega MARIANA PY MUNIZ CAPPELLARI já trabalhou – de maneira impecável e didática – neste Canal Ciências Criminais. Apenas me limito e fechar, com Ferrajoli, essa sua proposta crítica da teoria do crime, dessa forma: “A condição do reincidente (ou pré-julgado), culpabilizada desde a Antiguidade, foi duramente criticada por muitos escritores iluministas que com razão rechaçaram, por respeito ao princípio de retribuição, a hipótese de que fosse considerada como motivo para o agravamento da pena. ‘A pena’, escreve PAGANO, ‘cancela e extingue integralmente o delito, restaurando, ao condenado que a sofreu, a condição de inocente… Portanto, não se pode importunar o cidadão por aquele delito cuja pena já tenha sido cumprida’. E MORELLY chega, inclusive, a pedir que seja castigado quem ousar recordar publicamente as penas sofridas no passado por alguém em face de delitos precedentes. Essas indicações foram, contudo, totalmente subvertidas na segunda metade do século XIX pela regressão positivista da cultura penal, que centrou grande parte da nova política criminal na relevância e no tratamento dos tipos de autor, mais do que nos de delito. Foi, assim, (…) que surgiu no Código vigente uma articulada tipologia de delinquentes reincidentes – simples, reincidentes habituais, profissionais e por tendência –, tratados com penas progressivamente severas, submetidos a medidas de segurança, excluídos dos benefícios previstos para outros condenados, impelidos, de fato, a carreira criminal como incorrigíveis ou irrecuperáveis” (p. 466).

Faltará apenas o último tópico da terceira parte da obra: O juízo – quando e como julgar. Essa resenha fica para outra coluna.

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Anotações sobre o capítulo VIII de: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4ª ed., São Paulo: RT, 2014, pp. 421-493.

_Colunistas-AndrePeixoto

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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